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MB Review: Pílulas Azuis – Há um elefante na sala?

Recentemente, tive meu primeiro contato com uma obra do renomado quadrinista Frederik Peeters, sendo a narrativa em questão talvez considerada pela crítica como uma de suas obras-primas, intitulada de Pílulas Azuis.

A trama é um retrato autobiográfico de sua vida amorosa que permeia o encontro do amor e de uma patologia que dá origem a assuntos considerados tabus, mas que são tratados de forma a não perder o lado cômico. Apresentando uma visão do dia a dia de um casal que lida com esses problemas de forma crua, mas extremamente admirável. E é sobre isso que iremos falar hoje, bem vindos ao MB dessa semana.

– A Narrativa

Pílulas Azuis conta sobre o encontro de Frederik e sua história com Cati, envolvendo o vírus ignóbil que entra em cena e muda tudo, e todas as emoções contraditórias que ele tem de aprender a gerenciar: amor, raiva, compaixão. A obra nos permite acompanhar, sem nenhum vestígio de sentimentalismo, através de um prisma raramente (senão, nunca) abordado, o cotidiano de uma relação cingida pelo HIV, sem deixar de lançar algumas verdades duras e surpreendentes sobre o assunto. Apesar da seriedade do tema, Pílulas Azuis é uma obra cheia de leveza e humor. Não é à toa que é considerada por muitos a obra-prima de Frederik Peeters. Uma das mais belas histórias de amor já publicadas.

A trama, como dito na sinopse acima, retrata de forma extremamente realista o dia a dia do casal e seus desafios com a presença desse vírus, desde a descoberta, a reação de Frederik quando sua esposa comenta sobre ele e como aprendem e se enchem de dúvida em diversos campos de seu relacionamento, como no amor, sexo e a dificuldade em lidar com esses pormenores para com as pessoas que lhe rodeiam.

Os personagens são descritos na narrativa de forma extremamente crua e humana, nada é perfeito ou “maquinário” demais. A reação de Frederik e seus conflitos internos após a descoberta do vírus de sua parceira, os questionamentos racionais e sentimentais que são levantados e até mesmo a dificuldade e desenvoltura entre o real amar dele e a empatia são colocados em prova em cada pensamento que o autor demonstra, sendo muitas vezes cruéis, engraçados e românticos.

Além de um ponto em específico na narrativa que mais brilha para mim, que é a relação de Fred com o filho de Cati e também seu problema com a doença que foi passada de sua mãe, cada quadro sobre esse assunto, o dia a dia do casal com o filho, e até mesmo as sessões com os “coquetéis” são retratadas de forma extremamente delicada, mas não tristes. Realista seria a palavra, e em algum momento até cômica, e é isso que o autor quer passar. A doença em si não é o grande problema aqui, mas lidar com ela é a maior dificuldade.

– O HIV, o Sexo e a Desinformação

O HIV (vírus causador da Aids) em alguns momentos é colocado em segundo plano e a trama dá ênfase ao efeito dele nas relações. Aqui temos um casal que enfrenta tudo isso pela primeira vez. Não só do olhar do Fred que temos a visão, mas da portadora em si,que é a Cati. Muitas vezes ela é posta em uma situação de pena e a narrativa trabalha isso para que esse estigma seja quebrado, junto ao andar progressivo da obra, diversas polêmicas sobre o vírus são quebradas e explicadas tanto para o leitor quanto para o casal, quase sendo como uma quebra de parede narrativa.

Além disso, a obra não tem amarras morais para demonstrar todas as dúvidas sexuais do par romântico, aqui tudo é a flor da pele. As dúvidas, as posições, o desencontro e até as tensões sobre a questão da transmissão. Cada detalhe é tão específico que muitas vezes passa (além do detalhe do entretenimento) a sensação de que você está analisando questões sociais da patologia por um terceiro olhar.

Tudo isso também ganha mais uma camada quando a questão científica é retratada por meio de uma “autocrítica”. A obra flerta com as diversas desconstruções do vírus, polêmicas e as famosas “fake news” desse assunto em específico, onde em um delírio metafísico do autor, ele flerta com toda a desinformação e sentimentalismo que passa ao ver sua parceira nesse estado. Onde ele também muitas vezes pena para o lado irracional em prol de procurar algo para culpar algo ou alguém. Sendo esses pontos extremamente necessários em uma abordagem de visão ampla, afinal o que culpar ou entender quando se pega um vírus assim? Seria o sexo? A pessoa? É possível não culpar algo? Essas questões morais são colocadas de forma cômica, mas que não deixam de pesar pro lado mais sério da coisa, sendo extremamente necessário sua abordagem.

– Vale a pena?

Confesso que essa foi uma das leituras em formato de HQ que mais impactou o começo do meu ano. Uma leitura vivida, realista e crua, e que, em meio a tanta desinformação e polêmicas, consegue retratar de forma biográfica não só um olhar imaginativo, mas de quem realmente viveu a situação na pele. Suas dificuldades, dores, e como diz o ditado “Elephant in the room” (o grande problema que não dá de escapar). Cada página, graças a estética do autor, consegue ser bem cartunesca e vivida. Essa, com certeza, é uma experiência alternativa e singela para os fãs de quadrinhos.

Ou, como nas palavras de Cati, no posfácio da obra: “Mantenha a cabeça aberta! Combata os preconceitos. Apesar de tudo…Penso muito nisso…Que todo mundo deveria ter direito a uma segunda chance”.

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