MB Review: Color of Rage – Para quem se decepcionou com Yasuke da Netflix
No fim de abril ocorreu a estreia mundial do anime “Yasuke” pela Netflix. A animação vinha sendo aguardada por se tratar da “adaptação” de um fato histórico e inusitado: um samurai africano que serviu à Oda Nobunaga. Além da animação ser de responsabilidade do estúdio MAPPA, que recentemente tem feito um trabalho excelente, como vimos em Jujutsu Kaisen e Shingeki no Kyojin, por exemplo. Mas, para o desagrado de muitos, o resultado final foi um anime de samurai que conta com lutas de espadas, mechas, maldições e poderes psíquicos (apesar da qualidade de animação no geral ser muito boa, como já era esperado). Adaptação que decepcionou muita gente, inclusive eu (Apesar de alguns acontecimentos na série realmente irem de encontro à alguns registros históricos). Mas o assunto aqui não é esse.
Então fiquei pensando: “Caramba, oportunidade de contar uma história tão interessante e os caras desperdiçam essa chance”. Foi aí que lembrei de um mangá que também contava a história de um negro no Japão e, por mais que essa história seja fictícia, pode ser uma boa alternativa para aqueles que ficaram com um “gosto amargo na boca” após assistir Yasuke.
O mangá em questão é “Color of Rage” (também conhecido como “Colored”). O responsável pelo roteiro é ninguém menos que Kazuo Koike, o roteirista de “Lobo Solitário”. Já a arte é de Seisaku Kano. Vamos entrar mais em detalhes sobre a arte em breve. Color of Rage foi publicado no Japão em 1973, na revista Gekiga Gendai e foi completo em 1 volume.
Dois escravos libertam-se de um navio negreiro, um homem japonês e um afro-americano. Depois de escapar, eles encontram-se na praia na era Edo do Japão, em uma sociedade com um sistema de castas forte, isolada do mundo. Como é que o povo japonês vai reagir a este homem negro gigante? Como os ex-escravos vão sobreviver? Primeiro de tudo, vamos às coisas importantes: como é que eles vão tirar essas algemas de seus pés?
King, o afro-americano e Jojiro (George), o japonês.Apesar de haver relatos de portugueses que capturavam japoneses e os vendiam como escravos ao redor do mundo, a obra não explica como George chegou no sul dos Estados Unidos e conheceu King. Também não é explicado como eles foram parar em um navio negreiro na costa japonesa, de onde conseguiram escapar. O fato é que eles tiveram a oportunidade de começar uma nova e “livre” vida no Japão. Porém, “liberdade” é uma palavra que, por mais que todo mundo entenda o que ela quer dizer, como sabemos se somos realmente livres ou não? O que é a liberdade para você? Liberdade é simplesmente não ser escravo de alguém ou a liberdade só pode ser alcançada no momento em que você é livre para tomar qualquer atitude na sua vida, seja ela boa ou não, sem ser reprimido ou pagar pelos seus atos?
Esse é exatamente o paradoxo em que King e George se encontram pois, ao desembarcarem na Terra do Sol Nascente, não são mais escravos, mas ainda se encontram “amarrados” por diversas coisas que não só suas algemas. King, por ser negro, é aconselhado a andar com seu rosto coberto por faixas, já que os habitantes locais nunca haviam visto um homem daquela cor. Por isso, o personagem muitas vezes é visto pelos japoneses como algo exótico, ou até mesmo como um monstro. Seria essa a liberdade que ele tanto almejava? Ser livre, mas ter que andar escondendo seu rosto por ser negro? Tenho certeza que não.
Do outro lado, temos Jojiro (nome original de George), que está de volta em seu país – e que não precisa esconder seu rosto – mas assim como a grande parte da população local, se vê impotente diante dos tradicionais costumes japoneses, onde muitas vezes os camponeses e cidadãos de classe mais baixa são obrigados a “engolir” muitas injustiças sem reclamar. E os dois vão em uma jornada rumo à aldeia natal de Jojiro, onde podem talvez encontrar um pouco de paz.
Durante o percurso eles irão se envolver em vários incidentes, alguns diretamente relacionados com eles, outros não, mas sempre acabarão comprometidos de alguma forma. Como a obra tem apenas um único volume, não posso dizer mais do que isso para não estragar a experiência daqueles que se interessarem. É instigante também observar como Jojiro e King se completam, já que eles são praticamente metades opostas do Ying-Yang. Enquanto Jojiro é movido majoritariamente pela razão e possui grande habilidade com a espada, King é dono de uma força monstruosa, além de ser mais passional e empático, dada as circunstâncias pelas quais ele viveu maior parte de sua vida (por mais que ele tome uma atitude extremamente controversa ao longo da obra), o que muitas vezes influencia nas atitudes de seu amigo. E o oposto também acontece. Existe ainda um capítulo extra contando uma história que não está relacionada com a trama principal, mas é um capítulo bem bobinho, para ser sincero.
A arte remete bem ao estilo do Gekiga. A impressão que passa é que Seisaku Kano estava tentando emular o traço do Goseki Kojima (desenhista de Lobo Solitário), mas não sei se é o caso. Apesar da arte ser bonita, Kano não possui a mesma facilidade que Kojima para desenhar cenas de luta e cenas com muita velocidade. Me senti perdido várias vezes quando tentava acompanhar o que estava acontecendo em uma luta, apenas entendia quem tinha morrido ou não, quando via o corpo estirado no chão.
Também acho que a história poderia ser melhor desenvolvida. Não que seja ruim, mas era possível explorar mais, talvez em uma minissérie de uns 3 volumes. Principalmente porque eu gostaria muito de ver mais sobre o passado dos dois protagonistas. Inclusive, eu parabenizo os autores por retratarem um homem negro da forma que retrataram, sem estereótipos e coisas do tipo. Certo, certo… Eu sei que retratar um ser humano como um ser humano não é motivo de dar parabéns, mas estamos falando de um título de quase 50 anos, criado em um dos países mais homogêneos do mundo. Então, sim, a representação é muito boa.
Color of Rage não é uma obra prima, mas é uma leitura interessante, principalmente se você gosta de mangás de samurai com uma pegada histórica (mesmo que a trama em si não seja baseada em fatos reais) e se decepcionou com “Yasuke”. Talvez você encontre aqui o que esperava encontrar no anime da Netflix, mas não encontrou. A obra é inédita no Brasil, mas foi lançada nos EUA pela editora Dark Horse.
Por ser um mangá curto que teria potencial de ser melhor trabalhado, e por conta dos problemas que tive durante a leitura com as cenas de ação, eu dou uma nota 7 em 10, para Color of Rage. Mesmo com as ressalvas que fiz, indico, sim, a leitura.
Espero que tenham gostado e até a próxima!