MB Animações: Bojack Horseman
Confesso que demorei para parar e escrever sobre uma das animações que mais marcaram minha vida – e que agora marca minha pele também. Quando iniciamos o planejamento para o mês de setembro, sabia que tinha chegado a hora. A hora de falar de como Bojack Horseman e a depressão estão intrinsecamente conectados, tanto em seu roteiro original, quanto em sua influência em minha vida.
Claro, vou pular essa segunda parte chata, mas conforme eu for contando para vocês sobre quem é Bojack Horseman, vou pontuando sobre como a depressão, as doenças psicossomáticas e os transtornos psiquiátricos são retratados na série.
Importante frisar que a premissa de Bojack é ser uma comédia! Ele tenta, e consegue na maioria das vezes, mas existem aqueles episódios que são um soco no estômago, e também tem aqueles outros em que você ri bastante em meio às lágrimas. Vem comigo conhecer o equino egoísta mais querido de todos, Bojack Horseman.
Um cavalo de óculos escuros
Numa Hollywood alternativa, onde a população se mistura entre humanos e animais antropomorfizados, um astro de tevê dos anos 90 vive a decadência do pós-fama. Bojack Horseman foi a grande estrela de um sitcom noventista e, nos dias atuais, se esforça para conviver com o fracasso de seus trabalhos seguintes e busca desesperadamente se encaixar de novo como uma celebridade.
Enquanto sua agente, e ex-namorada, Princesa Caroline tenta alavancar a carreira decadente do cavalo, ele mesmo mete os pés pelas mãos (ou patas?) em todos os projetos que se envolve, e acaba sem sucesso em todos deles. Mal sucedido com a escrita de seu livro e numa relação complicada com a sua ghostwriter, Diane Nguyen, Bojack passa os dias bebendo e “só existindo”, algumas vezes acompanhado de seu estranho amigo que agora mora na sua casa, Todd. Meio humano, meio cavalo, Bojack vive num ciclo autodestrutivo de ações e consequências que respinga em todos à sua volta.
Diferente de algumas outras narrativas em que o antropomorfismo vem para suavizar as situações, em Bojack essa representação serve para simbolizar as personalidades do elenco. Sim, elenco! Mesmo que seja uma animação, a série é desenvolvida como uma produção audiovisual única, contando com cenas interpretadas pelos dubladores e mesas de leitura para os roteiros dos episódios.
Completo em seis temporadas, a série Original Netflix é um grande emaranhado de metáforas e representações para situações cotidianas e é uma das poucas, se não a única, animação que trata e retrata temas humanos com tanta precisão. Dramas sobre arrependimento, amadurecimento, frustração, erros e acertos. É, acima de tudo, uma série sobre saúde mental e o fardo que é conviver com isso diariamente.
Com seus inúmeros coadjuvantes brilhantes e complexos, Bojack Horseman vai além de tudo que se espera e surpreende a cada episódio. Uma animação sobre a vida e sobre a manhã seguinte do “felizes para sempre” e os dias que vêm depois disso.
Back in the 90s
Como viver o presente sem ser perseguido pelo fantasma de seu passado? Como viver no resquício de um brilho que outrora fora imenso como de uma estrela? A frustração de Bojack mora nessas questões. No desespero de se alguém notável novamente, Bojack vende os direitos de sua vida para uma autobiografia. O que teria de tão interessante para contar num livro? Um cavalo depressivo e viciado que vive há 20 anos vendo as reprises de seus episódios da série de tevê Horsing Around? Um homem decaído e preso numa espiral de fracassos e decepções sem nenhuma conquista recente, a não ser uma úlcera?
É difícil viver sem se perder nas memórias de um passado glorioso. Como já disse uma vez Sally Júpiter, “A cada dia que passa, o futuro parece um pouco mais escuro. Mas o passado, mesmo suas partes mais sujas, continuam ficando mais brilhantes”. É por essa ótica que Bojack enxerga sua fama passada. Por mais que nada fosse assim tão brilhante, e que os traumas e o caos que aqueles anos representaram, ao olhar para trás, são motivos de orgulho e há uma necessidade imensa de reviver esses dias.
Aqui, a reflexão é sobre como nós nos apegamos ao que já passou e nos perdemos nas perspectivas, ou quando muitas vezes não existem perspectivas. Para Bojack, e para muitos, o vazio existencial bloqueia as projeções de qualquer tipo de futuro e nos faz viver presos ao presente ou ao passado. Presos nas frustrações e nos quereres que parecem distantes e inalcançáveis. O vazio existencial de Bojack é tangível. Para ele, nada mais existe ou importa além de si mesmo, o momento presente e as memórias de seus melhores dias.
A questão é, não estamos totalmente condenados, no panorama geral das coisas somos só espectros mínimos que um dia serão esquecidos. Então não importa o que fizemos no passado ou como vamos ser lembrados. A única coisa que importa é o presente. Esse momento único e espetacular que estamos compartilhando.
A depressão e a crítica social da piada
Os personagens secundários e coadjuvantes em Bojack Horseman representam muito bem a pluralidade social. Um dos trechos mais falados e mais abordados quando se diz em depressão na série é o episódio em que Mr. Peanutbutter, o labrador amarelo mais otimista do universo, é retratado como “A Cara da Depressão”.
A depressão tem cara? Pudera um cão tão alegre e toxicamente otimista ser a representação da doença? É aí que a série brilha em sua crítica. Diversos personagens tentam convencer Peanutbutter que ele está deprimido, por conta do término/traição da noiva. Assim, ele acaba se convencendo de que está deprimido e vende a ideia comercial de que o personagem é a cara da depressão. Muitas vezes o que acontece é exatamente o inverso. Tentam constantemente nos convencer de que estamos bem e de que não estamos deprimidos. Que é tudo “só” uma fase, que tudo vai ficar bem e que só é preciso “animar-se”. Antes fosse assim, fácil.
Qualquer outro personagem de Bojack poderia representar a depressão, uma vez que muitos outros coadjuvantes estão imersos em crises depressivas. Nesta mesma temporada, Diane está presa numa crise depressiva severa, onde ela já não consegue se dedicar a nada e nem sequer fazer mais nada. Os dias passam automaticamente e, numa cena que Diane questiona Bojack sobre o uso de antidepressivos, relata que o vazio é imenso e que se medicar seria olhar embaixo de todo o vazio, e pode ser que encontre lá um vazio ainda maior.
Enquanto alguns personagens mergulham em suas situações depressivas (e vivem felizes em representar a depressão), alguns outros – e Bojack se encaixa dentre esses – disfarçam sua situação e são convencidos de que estão bem ou de que devem estar bem pois, afinal, “a vida é boa para eles”.
A vista do meio para baixo
Antes de continuarmos, preciso avisar que os parágrafos a seguir falam de um assunto delicado e que pode vir a ser um gatilho emocional: A depressão e o suicídio. Por favor, se você não se sentir bem com a leitura ou se isso te trouxer maus pensamentos ou recordações ruins, pule para o próximo tópico. Sim, agora estou falando com você mesmo. É, você, sim! Obrigada por ler até aqui, mas agora você pode pular para o próximo tópico se assim quiser. Não tem problema, o importante pra mim é que você se sinta bem.
Desde criança, Bojack se sentia deslocado. A sua forma de cavalo era detestável e ele não se via como alguém ou nem mesmo como algo importante. Isso vem de toda uma conjuntura familiar complexa que não entraremos em detalhes aqui – e que diriam muito sobre a trama e a interpretação da obra e eu ainda quero que vocês assistam à série!
Sendo assim, desde pequeno, Bojack admirava um cavalo que ele via na televisão. Secretariat. Para o pequeno Bojack, um exemplo e um espelho. O que não sabia é que seu astro também passava por problemas, os quais não transparecia na televisão. Ok, talvez você tenha pego o ponto aqui. Assim como Bojack em suas representações não transparece ser quem é ou viver com os problemas que tem, Secretariat fazia o mesmo. A questão aqui é: quem não faz? Isso remete diretamente ao que falamos no tema anterior, sobre o que somos para os outros, mas o ponto aqui é outro. Vamos falar de Secretariat e como a depressão pode vir a desencadear tendências suicidas e como isso é representado na série.
Um poema. Secretariat escreve um poema para representar seus últimos momentos de vida e como o suícidio lhe trouxe uma falsa sensação de liberdade, que é imediatamente questionada e – infelizmente – irreversível.
Em “A vista do meio para baixo”, o personagem registra em versos como o suicídio não é a resposta e nem a solução. Enquanto no momento do salto em direção à morte a escolha parecia ser a correta, ao chegar no meio do caminho e perceber que não há voltas, Secretariat se arrepende.
É preciso sempre pensar “na vista do meio para baixo”. Por mais que seja difícil viver com transtornos psiquiátricos e doenças psicossomáticas, a solução e a resolução está em se manter vivo. Está em como nós podemos diariamente vencer nossos próprios impulsos autodestrutivos e como nós podemos continuar caminhando em frente, diariamente, e nunca deixar de imaginar como é “a vista do meio para baixo”, o fim irreversível. É sobre não desistir.
Quando estou com você, eu não me odeio
Outro ponto importante de representação na série é a dependência emocional e as relações afetivas. Infelizmente, não é tão fácil assim estabelecer relações afetivas genuinamente saudáveis quando se sofre de algum distúrbio da saúde mental. Bojack e Diane são personagens depressivos, mas cada um lida de forma diferente com sua condição. Enquanto Diane é introspectiva e os reflexos de sua condição atuam diretamente sobre ela mesma, Bojack projeta isso nas pessoas à sua volta, criando uma rede de dependência emocional e relacionamentos tóxicos.
Por diversas vezes na série, Bojack acredita estar apaixonado por Diane. O que, de fato, não é verdade. Existe ali uma carência imensa que é confundida com um afeto imaginário. Até Diane se vê confusa com esse sentimento algumas vezes, absorta pela projeção de Bojack. Ela dá o suporte necessário ao amigo e se dedica na relação para que ele melhore e para que ele mesmo possa perceber o quão danoso é para si e para os outros. Infelizmente, nesse processo, Diane também é alvo dos danos.
Numa cena icônica, Bojack liga para Diane e se declara, mas ao analisar a declaração vemos o quão egoísta é o sentimento para com ela e podemos perceber a relação danosa entre eles. Tanto que, na mesma cena, a reação de Diane é totalmente diferente da de Bojack. Ele se afunda em álcool e se sente não compreendido, rejeitado. Ela tenta não ser atingida mais uma vez pelos estilhaços de Bojack e continua sua noite. Diane tem uma vida a ser vivida e tenta de todas as formas continuar, enquanto Bojack agarra-se em suas pernas tentando fazer dela o motivo de prosseguir.
E não é só com Diane que Bojack estabelece uma relação de dependência danosa. Desde quando era criança, Sarah Lynn tem Bojack como uma figura modelo. A garota que outrora fora a filha caçula do cavalo em Horsing Around agora já é uma mulher e ainda vive as consequências dessa relação de fama e dependência. Infelizmente, Sarah Lynn é uma vítima das ações impensadas e perigosas de Bojack, seja no abuso de substâncias ilícitas (que só se iniciou por influência do equino) ou na relação amorosa torta que desenvolvem.
Num episódio da sitcom que gravaram juntos, Bojack chega ao set alcoolizado e repreende a pequena Sarah Lynn. É nessa cena que temos um dos maiores socos da série e é um estalar que reverbera por todas as temporadas – e por toda a vida de Sarah Lynn:
“O mais importante é que você tem que dar às pessoas o que elas querem, mesmo que isso te mate, mesmo que isso esvazie você até que não haja mais nada para esvaziar. Não importa o que aconteça, não importa o quanto doa, você não para de dançar, e você não para de sorrir, e você dá a essas pessoas o que elas querem.”
E foi isso que Sarah Lynn fez, até o fim. Não parou de ser aquilo que os outros queriam que ela fosse e não foi quem ela mesma queria ser. Até o fim, ela foi a estrela que disseram que ela era, foi a viciada inconsequente que Bojack a incentivava a ser. E essa é uma das consequências de seus atos que Bojack tem mais dificuldade de lidar e é isso que muda por completo a vida do ex-astro.
Eu vejo você
Um dos episódios mais intensos da série é conhecido como o monólogo de Bojack e retrata muito bem quem é o personagem, como um todo. Ele faz piadas suspeitas, entrega toda sua melancolia e o vazio existencial fica mesmo tangível aqui.
Já falamos do quanto ele é nocivo para seus próximos, mas esse episódio em questão relata toda a construção da personalidade e do caráter do personagem. Justifica e apresenta, com cinismo e ironias, todo o contexto de vida familiar de Bojack, que o formaram ao que ele é hoje.
Importante frisar que é neste contexto que evidencia que a sua depressão não somente vem das frustrações e das decepções da vida adulta, mas ela caminha lado a lado com o equino desde a mais tenra idade. Desde que ele admirava Secretariat na televisão ou mesmo quando ele esperava a mãe dormir para, enfim, poder se aproximar dela e deitar no seu colo.
Infelizmente, a família de Bojack o fez assim. O fez ser cômico, descontraído e dinâmico – características que o fizeram ser um astro de sucesso – mas também o formaram carente, inseguro e deprimido. A relação entre seus pais e a própria relação dele com a mãe é desestruturada. Um filho indesejado, num casamento indesejado, com um pai ausente e uma mãe omissa.
Inclusive, a história da mãe de Bojack é uma das histórias mais tristes de toda a série – e uma das que mais me marcaram. Quando Beatrice era criança, seu irmão mais velho morre na guerra e sua mãe é acometida por uma imensa tristeza, que é tida pelos familiares como “histeria”.
Aqui, o criador da série dá um show de historicidade e trás para a animação uma realidade dos anos 40 nos Estados Unidos, a lobotomia – uma cirurgia no cérebro que visava “desligar” uma parte do lóbulo central e assim “curar” doenças mentais como a esquizofrenia ou a histeria. Inclusive, muitas doenças mentais ou psicossomáticas não eram diagnosticadas e tratadas adequadamente e eram tidas como histeria. A mãe de Beatrice (e avó de Bojack) é uma das vítimas dessa má interpretação e, pela sua depressão pós-traumática, é obrigada a passar pela cirurgia experimental e fica num estado de semidemência até o fim da vida. Beatrice aprende aqui, com uma promessa feita à mãe, de que não amará ninguém incondicionalmente. E isso reflete na criação do pequeno Bojack, anos depois.
No episódio do monólogo, Bojack faz o discurso no funeral de sua mãe, que faleceu sozinha numa casa de repouso acometida pela demência. Ele narra as dificuldades de viver com uma mulher como Beatrice, que nunca o enxergou ou o incentivou, afinal, ela nunca o quis e deixou isso bem claro em vários momentos da vida do cavalo. Irônico seria que as últimas palavras de Beatrice para Bojack foram “I see you”, Eu vejo você. Bojack sentiu ali pela primeira vez que a mãe o via. Aquela foi a primeira vez, e foi no leito de morte, que a mãe o notou. Ou seria uma ironia maior ainda se eles não estivessem numa unidade de tratamento intensivo americana e as placas do local não estivessem repletas de sua sigla, ICU. (Do inglês, intensive care unit. Semelhante a uma UTI aqui no Brasil, a leitura da sigla ICU é exatamente igual a pronúncia das palavras em I see you).
Os traumas da família Horseman se resumem bem numa fala de Bojack durante o monólogo: Nós três estávamos nos afogando, e não sabíamos como salvar um ao outro, mas havia um entendimento de que estávamos todos nos afogando juntos.. E eu gostaria de pensar que era isso que ela queria dizer quando estávamos no hospital e ela disse: “Eu te vejo”.
Muitas vezes vivemos com a depressão e não sabemos de onde ela vem ou como ela acontece e buscamos muito dar um motivo ou significado para nosso estado deprimido constante. Para Bojack, para além de sua vida adulta, sua depressão caminhava com ele desde muito antes dele saber quem ela era. Antes mesmo dele nascer, ela já caminhava ao lado de sua mãe, e antes disso, de sua avó.
Uma grande metáfora
Tudo no enredo de Bojack Horseman pode ser interpretado como uma metáfora para situações cotidianas. Da mesma forma que todos os temas apresentados durante a série dizem muito a respeito sobre a vida e as relações sociais. Não é exagero dizer que as representações em Bojack são fiéis a nossa realidade, mesmo que sejam animais em uma Hollywood de cores contrastantes.
A lição que fica no final é que é preciso continuar. Sempre, continuar. Por mais difícil que seja o próximo passo, ou o levantar da cama. Continue. Mas não continue a dançar por ser o que esperam de você. Continue por você mesmo, porque existem pessoas que acreditam em você e te querem bem, mesmo que não pareça agora e que as coisas tenham perdido um pouco a cor. Continue.
As cores vibrantes de “Hollywoo” – sem o D, pois Bojack roubou para dar de presente a Diane e provar “seu amor” – não são vibrantes por acaso. É uma metáfora para a vida, que continua colorida, mesmo quando enxergamos tudo em preto e branco. Até a abertura da série é uma grande metáfora. A vida passando rápido demais atrás, enquanto seguimos atônitos e um lo-fi toca ao fundo.
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