MB Nacional: Indivisível, de Marilia Marz
Um dos pontos turísticos mais conhecidos de São Paulo é o bairro da Liberdade. Localizado próximo ao Centro da cidade, é um dos pontos mais famosos, principalmente se você quiser conhecer questões asiáticas. Mas, além de nem sempre ter sido assim, boa parte da importância histórica que o bairro teve em seu passado não tem relação alguma com japoneses, chineses ou quaisquer etnias asiáticas, mas sim de um bairro negro.
Pensando nisso, Marilia Marz realizou um trabalho de conclusão de curso em cima de uma pesquisa relacionando a criação do bairro, enquanto negro, e a transição dele para o bairro asiático que hoje conhecemos. Sua pesquisa busca garantir que a história negra deste lugar não fique apagada, ainda mais em momentos como estes em que o revisionismo histórico se mostra cada vez mais frequente. Juntando a identidade japonesa com a negra, percebe-se que a mescla entre as duas é o que torna o bairro tão interessante e que, no final das contas, tais histórias são Indivisíveis uma da outra.
E é sobre este quadrinho, que saiu pela Conrad, que vamos falar hoje.
Indivisível é um quadrinho que saiu de forma independente em 2017 e republicado em uma edição especial, feita através de uma campanha de financiamento coletivo em 2019. Sua recepção foi excelente, sendo finalista do prêmio HQ Mix 2020 na categoria “Novo Talento – Roteirista”, finalista do prêmio Dente de Ouro 2018, na categoria “Quadrinhos” e vencedora do prêmio de publicações Des.gráfica 2018. O quadrinho chamou a atenção da editora Conrad que, em dezembro de 2020, publicou-o de forma digital.
Em aproximadamente 60 páginas, Marília mergulha em duas histórias que se contrapõem ao mesmo tempo que se complementam. O antes e o agora. O bairro negro e o bairro asiático.
No passado, Marília reconta uma das histórias mais importantes de todo o bairro, em que Francisco José das Chagas, mais conhecido como Chaguinhas, é o protagonista. A história, embora curta, mostra o cabo do Primeiro Batalhão de Santos, de sua revolução a favor do fim da desigualdade entre os soldados brasileiros e portugueses até o momento icônico em que é enforcado… e a corda se rompe. Sendo sincero, não sei se conto o desenrolar do que aconteceu pois, se por um lado é um spoiler do quadrinho, por outro, este é um fato histórico verídico. Pecarei deixando vocês na curiosidade, mas garanto que o acontecimento é algo de arrepiar.
Já na segunda metade do quadrinho, a autora explora a faceta que conhecemos hoje, o bairro asiático ao qual sempre que ouvimos a palavra “Liberdade” lembramos. As lojas japonesas, cheias de Pikachus, Doraemon, Narutinhos e os animes que fazem sucesso. Como a própria autora diz, demonstra e coloca em seu título, se engana aquele que crê que um invalida o outro. Pelo contrário, toda a história e cultura do bairro negro e do bairro japonês formam um emaranhado cultural que se torna Indivisivel.
A arte do quadrinho é interessante. Misturando fotografias com desenhos, cria uma estética única e muito boa de se acompanhar. Minha única ressalva é a quantidade de vezes que é necessário dar zoom para poder ler cada fala, mas não sei se isto aconteceu pelo fato de que o quadrinho foi pensado originalmente no formato físico ou se foi um revés da minha primeira experiência lendo um quadrinho online.
A questão geográfica do quadrinho também é um ponto maravilhoso. Para quem frequenta constantemente o bairro, como eu, é um deleite ver como cada rua, cada ponte e até mesmo as lojas estão nos seus devidos lugares. O ponto que chama mais a atenção é na virada da primeira para a segunda história, onde há uma quebra de arte e narrativa muito bem-vinda. Enquanto a primeira história segue uma linearidade contando um trecho da história de Chaguinhas, a segunda traz uma abordagem mais experimental e lúdica para mostrar a complexidade e a variedade que é o bairro nos dias de hoje.
Mas, além disso, o quadrinho também aborda uma questão importante. O apagamento de toda a cultura negra que vem ocorrendo. Não é uma novidade que estamos passando por períodos políticos “complicados”, sendo o mais eufemista possível, vivendo em um mundo que constantemente passa por revisionismos para apagar tragédias que aconteceram há pouco tempo atrás em nossa história, seja com conversas de como “A ditadura teve seu lado bom” (ou ainda os mais radicais que dizem que ela nem sequer existiu), “a escravidão não foi como falam” ou outras questões ainda mais absurdas.
Este projeto de apagamento se mostra também no Bairro da Liberdade, de formas mais sutis, como a associação dele apenas a identidade asiática, ou de forma mais direta como o projeto feito em 2018 de alteração do nome das estações e placas de “Liberdade” para “Japão – Liberdade”, no aniversário de 110 anos da Imigração Japonesa.
De forma alguma estou apoiando ou pedindo para que esqueçamos ou ignoremos a cultura asiática presente neste bairro, até porque aqui no Brasil temos a segunda maior população japonesa do mundo, atrás apenas do próprio Japão. Porém, o que está sendo dito nesta resenha, e no quadrinho de Marília, é sobre não esquecermos que não é só sobre um grupo etnico-cultural, mas dois, que estão mesclados.
E, para aqueles que possam acham que estou exagerando e politizando onde não tem toda esta problemática: Realmente acreditam que um bairro chamado Liberdade, em que um dos locais turísticos mais importantes é a Igreja das Almas dos Enforcados, não tem teor político em sua construção?
Que usemos este momento, e principalmente este quadrinho, para refletir um pouco sobre o apagamento que tem existido constantemente e sobre a nossa própria história que é rica, plural e diversificada, mas que conhecemos tão pouco. E não esqueçamos nosso passado, de forma alguma. Como está gravado na arquibancada do Estádio Nacional do Chile, que foi usado como prisão pelo ditador Pinochet: Um povo sem memória é um povo sem futuro.