MB Review: I sold my life for ten thousand yen per year
Quanto vale a sua vida? A de Kuzunoki, apenas 10 mil yenes por ano. Sem perspectivas de continuar, o jovem decide vender o tempo que lhe resta vivo para então usufruir de seus últimos meses com alguma posse. O que ele não esperava é que, para monitorar seus derradeiros dias, uma garota o acompanharia.
I sold my life for ten thousand yen per year é uma curta e densa história sobre estar vivo e debate sobre o valor – monetário e também filosófico – de nossa existência.
Mangá de Shouichi Taguchi e Sugaru Miaki, I Sold My Life For Ten Thousand Yen Per Year (Eu vendi minha vida por dez mil ienes por ano) é uma obra baseada no famoso romance Três dias de felicidade, de Miyaki Sugaru. Publicado no Brasil pela editora JBC em outubro de 2020, o mangá é completo em 3 volumes e foi vendido na época por R$27,90 cada. Infelizmente, os mangás não são muito fáceis de achar para comprar nos dias de hoje e um relançamento é aguardado pelos leitores.
Você estaria interessado em vender seu tempo de vida?
A narrativa foca em um jovem de 20 anos que perdeu tudo na vida e chegou ao fundo do poço. Desiludido, ele decide vender todos seus bens materiais para tentar de alguma forma sanar suas dívidas e continuar vivendo com o pouco que conseguiu, mas não é o suficiente. Até que ele fica sabendo de uma misteriosa empresa que compra o tempo de vida das pessoas e decide então vender praticamente toda a vida que lhe resta.
A peculiaridade dessa empresa – se é que podemos chamar assim – está nos tipos de negociações oferecidas. Kuzunoki pode: 1. vender seu tempo de vida restante, ou seja, todos os anos de vida que teria até o dia de sua morte; 2. Vender seu tempo em vida, que nada mais é do que vender seu tempo à serviço da empresa; 3. vender sua saúde.
Dentre as três opções, a mais rentável para o jovem é a primeira e, após uma criteriosa análise da vida futura de Kuzunoki, calculando especificamente o quanto ele poderia contribuir para a sociedade e o quanto poderia fazer a diferença em vida, seu tempo restante (30 anos) foi cotado em 300 mil ienes… no total, o que na cotação atual (03/11/2021) equivale à aproximadamente 14 mil reais.
Desiludido, Kuzunoki aceita a oferta e vende 30 anos de sua vida e resguarda apenas três meses e três dias, de acordo com as normas contratuais da empresa. O que o jovem não esperava é que, durante esses três meses, ele seria acompanhado 24h por uma monitora, Miyagi, responsável por monitorá-lo e garantir que ele não cause nenhum problema à empresa ou a alguém próximo, o que faz sentido visto que sua vida agora pertence a grande corporação misteriosa.
Sem perspectiva de futuro, a busca de salvação no passado
Mesmo antes de vender sua vida, Kuzunoki já não tinha mais anseios e perspectivas de futuro. O jovem permanece agarrado ao seu passado e à nostalgia de uma promessa de dias melhores. Segue sempre olhando para trás, para o verão de quando era jovem e se atém a uma memória de sua amiga – e amor – Himeno.
Sendo assim, com o dinheiro que arrecadou na venda, Kuzunoki decide reencontrar seu amor e se declarar, mesmo que para isso tenha que enfrentar a derrota à sua promessa jovial de que, depois de dez anos, eles estariam vivendo bem e, caso não tivessem encontrado ninguém especial, se casariam como última opção. É um tipo de promessa que vemos em muitas histórias, um pouco batida, mas isso não deixa a obra ruim, pois esse não é o foco narrativo.
Estar preso ao passado e usar isso como base de apoio para os seus últimos momentos de vida revela em Kuzunoki um traço comum em nossas vivências. É difícil viver sem se perder nas memórias de um passado mais tranquilo. Cito mais uma vez Sally Júpiter, “A cada dia que passa, o futuro parece um pouco mais escuro. Mas o passado, mesmo suas partes mais sujas, continuam ficando mais brilhantes”. Para o protagonista, que passou toda a vida existindo na mediocridade e sem grandes feitos, seu ponto de apoio era a promessa à Himeno e a chance de revê-la, como se isso fosse preenchê-lo de significado novamente.
Preencher-se de significado. Uma busca constante humana e que é questionada a todo momento em I Sold my Life. O que nos faz completos? Nossas atividades e nossas relações são verdadeiramente genuínas? Nossas ocupações e hobbies fazem parte de nossa existência ou nos servem para preencher um espaço e significar nosso presente? O quanto nosso passado revela sobre o que somos hoje e como podemos seguir adiante sem se prender a promessas, pessoas, chances e aos significados?
Kuzunoki, infelizmente, encontra as respostas para essas perguntas e não de forma fácil. Sua caminhada pelos últimos dias de vida é árdua e acompanhamos com ele todas suas verdades e certezas escoarem.
O fim da vida iminente
Em I Sold my Life temos, o tempo todo, o protagonista conversando com ele mesmo, refletindo sobre sua vida, suas escolhas e quais serão seus próximos passos nos três meses que lhe restam. Em nenhum momento Kuzunoki entra em desespero com o fim da vida iminente e isso nos faz até questionar se, no final da narrativa, o jovem vai mesmo deixar de viver. Mas isso não influencia em sua trajetória, pois em nenhum momento o protagonista duvida disso.
O ponto alto no mangá são as reflexões diante desse fim. Aceitar a morte, escolher morrer, trocar sua vida por dinheiro e viver o que lhe resta de forma livre, sem responsabilidades ou preocupações. Embora o protagonista opte por correr atrás do seu passado num primeiro momento, as circunstâncias vão mudando e ele fica sem respostas e certezas constantemente, numa busca frequente de novos significados para seus dias. Tudo isso acompanhado 24h por Miyagi que, assim como ele, também tem sua vida atrelada à corporação.
De certa forma, Kuzunoki escolheu morrer. Diante de uma vida sem expectativas, ele decidiu por bem não viver mais. E essa é uma densa mensagem presente na obra, que nos faz pensar sobre estar vivo e sobre o peso de nossas escolhas enquanto vivemos. Vivemos nossas escolhas, isso é fato, e durante toda nossa vida perpetua a dúvida de como serão nossos últimos dias.
Raul cantou sobre isso em “Canto para minha morte”, pois há sempre um mistério e incerteza sobre quando ela chegará, e essa incerteza não está presente no futuro de Kuzunoki. Ele escolheu morrer e sabe que, dentro de três meses e três dias, a morte chegará. Ele não sabe – e não parece se preocupar – em como será a execução da sua sentença quando seu prazo expirar, e isso não o assombra. Em contrapartida, a conjuntura em que se encontra não o movimenta muito para se preocupar em como viverá seus últimos dias, o que o leva a um estado de estagno e desesperança.
As máquinas de venda e a crítica capitalista
Todo o mangá é repleto de máquinas de vendas nas paisagens. Essas máquinas automáticas estão muito presentes no Japão e em grandes metrópoles, e na Terra do Sol Nascente elas são abundantes. De várias formas, formatos e variados produtos produtos, pode se encontrar de tudo nas máquinas de vendas. Alimentos, brinquedos, itens básicos… as possibilidades são imensas.
E, dentro dessa premissa, pensamos em “se existissem máquinas de tempo de vida”? “E se pudéssemos vender e comprar saúde nas máquinas?” Afinal, com o avanço das relações comerciais, a única coisa que ainda não tem valor estimado (concretamente, já que subjetivamente é possível pensarmos num preço) é a vida. Talvez você conheça O Preço do Amanhã, outra narrativa famosa por discutir o valor da vida e do nosso tempo, e casa muito bem com o debate de I Sold My Life.
A narrativa nos permite tecer uma crítica ao capitalismo e as relações comerciais modernas, se pararmos para analisar especificamente quais são as opções de compra e venda da vida de Kuzunoki. Tempo de vida, tempo e saúde. Exceto o primeiro, bem mais improvável e mais sobrenatural, o que difere as demais opções do que já fazemos atualmente? Afinal, vendemos nosso tempo e nossa força de trabalho para o sistema capitalista diariamente. Somos pagos pelo nosso tempo, nossas 8h diárias – e muitas vezes muito mais – para que consigamos recursos e possamos viver as outras 8h – iludidas – horas de lazer e nos resguardemos 8h de sono. A vida, dividida numa fração terciária.
Isso evoca reflexões sobre a liberdade do indivíduo, sobre a nossa vivência em sociedade e sobre – novamente – o valor de nossas vidas. Não é só na obra de ficção que se coloca um valor na vida e em nosso tempo. A vida real, cotidiana, nossa relação de trabalho e consumo, faz isso também. De forma velada, até discreta, e só ao parar para refletir podemos visualizar, escancaradamente, quanto vale a nossa vida e a nossa saúde. O valor que nos pagam por ela.
E podemos ir além do valor comercial e capitalista da vida tendo em vista que “vendemos” nosso tempo para tantas e demais coisas, como hobbies e relações sociais. Tudo é uma troca e as relações sociais também são pautadas em trocas, a diferença é que, ao invés de uma moeda, recebemos afeto, consideração, preocupação, cuidados, amor… bom, a lista é grande.
De fato, toda a existência humana moderna está pautada em trocas, e nas entrelinhas de I Sold My Life vemos isso, a troca do tempo de vida em dinheiro não significa nada para o protagonista depois de um tempo. O que lhe resta é apenas seus meses e sua monitora, sem posses e sem demais relações sociais.
Considerações finais
I sold my life for ten thousand yen per year é um mangá curto e certeiro. Um Slice of Life diferente do que vemos no gênero e que nos possibilita debates e reflexões bem complexos ao longo de suas páginas. Uma lição de vida emoldurada numa arte incrível que passa toda a sensação de monotonia e desesperança de uma forma leve, mas precisa.
Confesso que a leitura me baqueou um pouco e me fez – e faz até hoje – repensar a forma que gastamos e no que dedicamos nosso tempo. A vida é efêmera, e se prender a trocas comerciais talvez não seja o caminho mais digno a percorrer, é preciso aproveitar mais e melhor nosso tempo de vida. A desesperança pode fazer parecer tentadora a ideia de vender alguns anos de nossa vida em troca de algum dinheiro, mas é um mero engano. Uma sociedade pautada em consumo e posses exime o sentido de estar vivo às vezes, mas é importante se lembrar do valor da vida. I Sold My Life serviu como lembrete.