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MB Animações: Heike Monogatari

O conto da ascensão ao declínio, mas também sobre a Impermanência

“Os sinos do templo de Buda anunciam a mensagem de que toda existência é impermanente.
As flores da árvore de sal tornam-se brancas em luto.
Um lembrete de que todos que prosperam devem cair.
A indulgência não dura. Ela deve ser apenas um sonho de uma noite de primavera. Os destemidos deverão cair e ser apenas poeira no vento”.

Essas são as palavras finais de Heike Monogatari, que de forma alinhada com tudo que foi apresentado até seu fim, amarra e destaca a mensagem que já é simbolizada desde o seu início: Toda a existência não permanece.

Obs: Aviso para quem ainda não assistiu e não curte spoilers, vai ter alguns em questão.

Heike Monogatari (O conto dos Heike) é uma versão adaptada em anime de uma releitura moderna escrita por Hideo Furukawa de um épico japonês de mesmo nome, que amplamente é considerado umas das obras mais importantes da literatura histórica japonesa. O conto não se reduz a um único autor, já que o compilado da história também é resultado de diversas versões orais compartilhadas por artistas viajantes, os Biwa hōshi, que recitavam os eventos acompanhados do instrumento Biwa, relata a ascensão e queda do clã Taira, ou Heike, durante o período de conflitos contra o clã Minamoto, Genji, pelo controle do Japão no final do século XII, historicamente ficando conhecido como o período das Guerras Genpei.

Dada a imensa importância do épico japonês, Heike Monogatari foi a investida ousada e criativa produção do estúdio Science SARU em 2021, tendo a sua direção nas mãos da renomada Naoko Yamada (K-On!, Koe no Katachi). A produção teve ao todo 11 episódios, lançados de 16 de setembro a 25 de novembro de 2021, nos serviços de streamings da Fuji TV on Demand no Japão e da Funimation. 

Sinopse

Nesta adaptação, Heike Monogatari reconta mais uma vez a história de ascensão do clã Heike até a sua queda, na perspectiva principal de Biwa, uma criança e artista viajante que possui a capacidade de enxergar o futuro em um dos seus olhos. Logo no início, ao presenciar um incidente envolvendo subordinados dos Heike que iam executar uma mulher, Biwa “insulta” o ato. Devido a isso, seu pai acaba sendo assassinado em seu lugar, na sua frente, como castigo. Biwa acaba tendo uma visão sobre o futuro, e resolve se encontrar com um dos filhos do líder dos Heike, o Lorde Tara no Shigemori, para anunciar a futura queda de seu clã. Compreendendo o que Biwa disse, ele pede perdão pelo assassinato de seu pai, causado pelo seu clã, e resolve adotá-la para morar junto de sua família. Biwa então passa a presenciar de perto os Heike, vivenciando o presente, temendo o futuro.

Contextualização e função de Biwa

Em princípio, uma das coisas que chegou a me incomodar no início da história, até sua metade, era a forma aparente com que Heike Monogatari trazia vários eventos “faltando contexto”, não facilitando a compreensão deles, deixando uma sensação de deslocamento sobre o que acontecia, além de não entender bem qual era a proposta sobre a função da protagonista. Vamos nos alongar nos porquês da incomodação.

A premissa de Heike Monogatari se situa num contexto histórico do Japão e, basicamente, os eventos dessa narrativa estão mais acessíveis para o público local em conseguir assimilar como eles ocorrem, e quem são as figuras do conto presentes na história, por ser algo que faz parte do imaginário local, tendo imensa importância na história desse povo. Embora exista o sentimento de que estivesse faltando alguns contextos, é possível compreender que, essa ausência e a sensação deslocada, se explica pela não familiaridade com o conto e tudo que ele abrange no seu contexto histórico local, cultural e político.

Sobre toda essa questão, a existência de Biwa e sua proposta de função, começa a fazer sentido, sendo funcional na mediação do olhar que o espectador tem sobre essa história, com a noção de que ela também acaba sendo mais específica e próxima para o público local japonês. A personagem é uma existência ficcional, e meio que representa esse olhar do espectador que está ciente sobre o passado, e principalmente o futuro destinado ao clã Taira, pelo fato de que tanto ela, como o próprio espectador, não consegue intermediar no que acontece, apenas presenciando. 

Além da existência de Biwa ser claramente uma referência aos Biwa hōshi, seja pelo seu próprio nome, numa alusão aos seus instrumentos tradicionais, como o próprio ato da personagem testemunhar a história desse clã, coisa também feita por essas figuras históricas. Tudo isso, de certa forma, torna a personagem uma presença metalinguística na narrativa, contribuindo junto da composição em geral da adaptação, para testemunhar o conto sobre o conto, em outra perspectiva, ressignificando a mensagem proposta.

Biwa adota o nome do instrumento que utiliza, também chamado Biwa, totalmente cultural na história japonesa

Os sinos do templo de Buda anunciam a mensagem

Ainda no primeiro episódio, tem duas cenas que apresentam uma prévia impressão de como são os Taira. Cheios de poder, vaidade e ignorância, expressos na forma que o pai de Biwa é assassinado, apenas por conta de uma “insulta” ao nome do clã, e também na cena da primeira aparição do chefe do clã e família, Taira no Kiyomori, numa festa em que um dos membros aponta que apenas as pessoas do clã são realmente “pessoas”. 

Nessas duas cenas iniciais, a história estabelece como o caráter do clã é tão cruel para quem não faz parte dos Heike ou para aqueles que desrespeitam o seu nome. Entretanto, seria por esse mesmo caráter,  principalmente representado pelo líder Kiyomori, que levaria os Heike a uma queda devastada.

Essa primeira impressão sobre os Heike é essencial para trazer destaque ao extrapolar dos sucessivos eventos que causariam de forma drástica a sua queda, a partir da metade da animação. É nesse período que a história e seus personagens começam a causar um afeiçoamento, pois se torna bastante instigante o quanto a mudança de uma realidade que viviam, tão estável e tranquila, acabar se transformando em um cenário de angústia, ainda permeado de vaidade, porém cada vez mais incerto. Momentos como a morte de Shigemori, ele que é uma das únicas pessoas de responsabilidade e lucidez entre os Taira, trazendo certo controle sobre as ações do líder Kiyomori. A sua morte acaba afetando tanto as ações do clã como a vida de seus filhos e irmãos, que culminaram em mortes e mais mortes. Destacando um lado de instável fragilidade de uma família que foi rodeada tanto pela vaidade como por todo o prestígio do poder.

A mensagem que a animação de Heike Monogatari propõe, então, se amarra até chegar na sua simbólica e belíssima conclusão. O trabalho feito pela direção em destacar os intensos momentos de batalhas, e principalmente as mortes de membros da família com que Biwa vivenciou, traz significantemente o sentido sobre o que é impermanência. Talvez Biwa pudesse interferir na mudança em relação ao destino do clã, mas o futuro não é exatamente vantajoso, sendo algo que ela mesmo não conseguia encarar.

Quando Biwa compreende que tudo não permanece, ela encontra sentido em testemunhar a história dessas pessoas, a ascensão do poder e suas ações, até o declínio inevitável. O ato final, e todo o seu simbolismo, algo que sempre esteve presente no anime, transparece a efemeridade da vida, na impermanência de todas as coisas, assim como as flores que caem de uma árvore deixando as suas sementes ao chão. Assim fica a história, como uma semente deixada pelo conto dos Heike.

Animação

Heike Monogatari, de forma consistente, manteve um nível de animação incrível na maioria de seus detalhes, do início até ao fim. O traço do anime, apesar de simples, ou talvez peculiar, se comparado aos padrões de outras animações, é muito belo e relaxante de assistir, com traços que referencia culturais pinturas japonesas. A direção, seja de arte e som, durante os seus 11 episódios, trouxe diversos momentos emocionantes, com enquadramentos e nuances belíssimas que expressam a sensação sobre o clima do que está acontecendo. Enfim, foi uma bela produção, a mensagem proposta foi bem testemunhada, vale a pena a experiência e contemplação desse conto histórico em animação.

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