MB Review: Kanikosen – O navio dos homens – A riqueza que existe em mares distantes
Ciro Seiji Yoshiyasse (editor e ilustrador da revista marxista Mouro) disse as seguintes palavras sobre Kanikosen: “A circunstância deste livro tem um significado importante no encontro do Japão com o seu povo, porque cada palavra escolhida gotejou da violência real contra homens, mulheres e crianças de um país que se apressava em superar a Idade Média e avançar para a modernidade industrial.” Suas palavras expressam o peso da obra Kanikosen e sua posterior publicação em mangá.
A obra nos apresenta uma realidade densa e irreal, mas as bases que levaram a constituição dessa história não estão em livros, muito menos na imaginação de seu autor, mas sim em uma realidade que esteve presente no Japão durante as primeiras décadas do séc XX e ainda se faz presente em diversos lugares do mundo.
Acompanhamos a história de pessoas em busca sobrevivência. Mas, em meio às ondas que lentamente os carregam, percebem que respirar nem sempre é o mesmo que viver. Algumas vivências podem ser piores que o inferno e, ao perceberem isso, se movem em busca de uma autêntica vida, mesmo que a morte esteja no meio caminho.
Ao longo de nossa interação com obras japonesas, recebemos parte de sua cultura e história, ganhando diversos contornos por meio do imaginário de diferentes autores que conhecemos e nos aproximando de uma realidade que outrora acreditávamos distante. A narrativa em um mundo globalizado tem o poder de nos chocar com as diferenças que percebemos no outro, mas também tem o efeito de propiciar o sentimento um de compreensão ou identificação nas similaridades entre as diversas realidades que ocupam o mundo.
Em meio a esses sentimentos escrevo essa review. O mangá base para essa análise é Kanikosen: o Navio dos Homens, mangá adaptado de Kanikosen, obra máxima de Takiji Kobayashi (1903 – 1933), publicado em 1929, com forte influência sobre aqueles que a publicaram, leram e se enxergaram nesta história, chegando a custar a vida de seu autor.
ADAPTANDO UM GRANDE CLÁSSICO
A publicação de Kanikosen: o Navio dos Homens chega ao Brasil pela editora Veneta, que tem sustentado um dos melhores portfólios de mangás no Brasil. Edições como Vida à Deriva enchem os olhos e a mente de qualquer admirador de quadrinhos japoneses. A obra de Gõ Fujio e Takiji Kobayashi não fica atrás, com primazia em sua impressão, carinho na revisão e o encanto da edição.
A edição de Kanikosen conta com 192 páginas, formato 15,8 x 23 cm, acabamento em brochura e preço de capa em 64,90.
Posteriormente me aprofundarei em sua história, mas antes é necessário contextualizar sua publicação. Kanikosen é uma adaptação do livro homônimo, publicado em 2006 pela Higashi Ginza Publishing. O roteiro é creditado à Takiji Kobayashi, autor da obra original, mas devo ressaltar que existe um grande simbolismo por trás desse nome. Kanikosen foi a obra que lançou o autor para os holofotes, mas sua publicação se deu em contexto de forte repressão. As diversas críticas que compunham sua obra e o movimento que representava, a literatura proletária, acabaram por tornar o autor um alvo do governo e grupos que tinham interesse em manter o status quo. Apenas quatro anos após sua publicação o autor foi cruelmente assassinado pela Polícia Especial Japonesa, fazendo com que a obra fosse censurada durante décadas.
É apenas na primeira década dos anos 2000 que temos uma retomada em obras aclamadas pelo movimento proletário. Em 2008 a versão em livro de Kanikosen vendeu cerca de 500 mil exemplares, um número substancial em relação a sua venda em anos anteriores – 5 mil exemplares. Não é possível dizer em que ponto essas vendas foram alavancadas pela publicação em mangá ou a retomada de obras desse movimento, mas é inevitável perceber a ligação entre essa adaptação e o retorno de um movimento que sofreu com diversas censuras (JUNIOR, 2021). Dito isso, ainda que a obra tenha se inspirado em outros livros e produções audiovisuais, o nome de Takiji Kobayashi não poderia ser esquecido, visto o peso dessa história e o significado que teve em sua trajetória, ainda que seu final tenha sido trágico.
A HISTÓRIA
Sinopse: Quem embarca no navio Hakuko Maru é alertado de seu destino. Parece ser a única alternativa que resta para aqueles desempregados, pequenos comerciantes falidos, camponeses sem-terra, jovens pobres e outros rejeitados da sociedade. Ainda assim, ninguém está preparado para o inferno que é a rotina do navio. Naquele misto de barco e fábrica, em alto mar, os trabalhadores não têm qualquer direito e estão à mercê da exploração brutal e da violência dos capatazes do conglomerado pesqueiro. Alguns morrem de desnutrição, outros de maus tratos. Os trabalhadores então descobrem que, se não querem trabalhar até à morte, terão que resistir e lutar pela vida. (Retirado do site da editora Veneta)
Em Kanikosen somos apresentados a um grupo de trabalhadores com a função de passar alguns meses no Hakuko Maru, um navio-fábrica. Esses navios tinham por objetivo a pesca e conservação de caranguejos enlatados, atividade extremamente lucrativa na época, levando a grande influência daqueles que investem em sua execução. Mas os lucros exorbitantes eram acompanhados por um intenso processo de exploração. A necessidade do crescimento econômico e a industrialização do Japão tinham como custo a vida e a saúde de seu povo. Essa história não se resume à vida ceifadas no Hakuko Maru, mas se estende aos mais diversos empreendimentos inaugurados no começo do séc XX.
Nesse ponto, devemos começar a fazer uma distinção entre os grupos que compõem a história, lembrando que Kanikosen é uma obra que se encaixa na concepção de literatura proletária, uma literatura voltada à conscientização da classe trabalhadora, buscando apresentar narrativas que permitam ao leitor perceber uma sociedade dividida em classes e os grupos que a compõem as suas distintas camadas presentes. Essa concepção de sociedade ganha força a partir dos escritos de Karl Marx (1818–1883), onde o burguês se caracteriza enquanto o detentor do capital e do meios de produção produção e o proletário aquele que vende sua força de trabalho, na maioria das vezes de forma aviltante. Embora a análise de Marx acerca do capitalismo e da sociedade de classes não possam ser resumidos em poucas linhas, é válido ressaltar que é perceptível a exploração de trabalhadores nas mais diversas fases da industrialização, essa constatação é importante para compreender o surgimento e as características da literatura proletária, buscando provocar uma identificação daqueles que são explorados com os personagens de suas histórias, ao mesmo tempo que provoca esses indivíduos para que se unam na luta de classes.
A partir da caracterização da narrativa proletária, é possível identificar seus elementos em Kanikosen na forte crítica ao sistema capitalista, o uso de não protagonistas, uma vez que a revolução proletária não é possível através de um indivíduo isolado, a estrita colaboração entre Estado e Capitalismo, e a forte opressão através da violência em suas mais variadas formas.
A experiência desse tipo de narrativa é acompanhada pelo sentimento de curiosidade, em conhecer outras narrativas do mesmo movimento, acompanhada da satisfação. Puxando de memória, não me lembro de ter lido antes algo que se encaixe nesse movimento literário. A inexistência de um protagonista causa um estranhamento inicial, mas não é algo que faça falta à narrativa. Pelo contrário, assim como feito nos filmes de Sergei Eisenstein, cria um sentimento de satisfação por acompanhar a formação do coletivo e sua luta. Os diferentes aspectos da alienação também são bem representados, não deixando dúvidas sobre a aceitação dos diversos tipos de violências que os trabalhadores sofrem, é muito comum que haja uma aproximação de seus personagens e dos sentimentos ali representados. Os textos extras que ocupam as páginas finais tem função indispensável nessa experiência narrativa, permitindo um suspiro de esperança enquanto nos recuperamos de uma narrativa cruel. Somos tomados por um tremendo choque de realidade ao perceber que a narrativa apenas expõe acontecimentos que compunham a realidade de muitos, realidade essa muito bem documentada por Takiji Kobayashi e representada por Gõ Fujio.
VALE A PENA
Kanikosen é um desses mangás instigantes que leva os leitores a buscarem mais informações sobre a história que acompanham e toda sua construção editorial reforça essa hipótese. Os textos e conteúdos adicionais são indispensáveis para a leitura e se somam à experiência narrativa. Mas nem tudo são flores.
Narrativamente falando, não consigo sentir gargalos ou problemas no desenvolvimento de Kanikosen, mas isso está atrelado ao meu interesse por narrativas e experiências diferentes. Ao contrário de outras narrativas que se utilizam da conexão que temos com os personagens para passar sua mensagem, a força da obra está na mensagem em si. O subtexto é muito importante para a compreensão de suas ideias. Kanikosen pode parecer apenas um bom drama e perder o peso de sua mensagem a depender do leitor, fazendo com que seu final soe vazio e os quadros apresentados tenham menos significado. Não quero com isso dividir as pessoas entre bons e maus leitores, mas pontuar que a experiência é diferente a depender da maturidade de quem o lê.
Por fim, acredito ser uma experiência muito rica e merece uma chance. A arte de Gõ Fujio e a disposição dos quadros é bem feita. Um quadrinho que poderia ser facilmente confundido com uma obra ocidental. Não que seja isso seja positivo ou negativo, mas pode facilitar na hora de apresentar para alguém que tenha preconceitos com mangás. A Veneta merece todos os meus aplausos pela edição e a escolha em trazer o título para o Brasil. Kanikosen é uma das minhas primeiras leituras do ano e termino a experiência sabendo que será uma das que mais me impactaram em 2022!!!
REFERÊNCIAS
Sorte Junior, Waldemiro F. “O movimento literário do proletariado no Japão: uma análise de dois contos de Yoshiki Hayama”. Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 23, núm. 1, 2021, págs. 63-101.