MB Review: Boy Meets Maria

Peyo deixou uma herança notável para o mundo com o mangá “Boy Meets Maria”, licenciado no Brasil após sua morte aos 23 anos. Mesmo jovem, criou uma obra que é extremamente relacionável para muitas pessoas, através de seu tom realista e boas composições na construção dos protagonistas que se complementam.

Boy Meets Maria inicialmente é um título atrativo pela escolha das cores e desenhos chamativos na capa, uma mistura entre tons de rosa, azul, e branco, que pelo contexto da narrativa, remetem a bandeira transexual, e o verde que, na bandeira agênero, representa a não-binariedade.

Apesar da estrutura visual suave e refinada, Boy Meets Maria é um mangá particularmente doloroso ao retratar a vivência após traumas inesquecíveis e a experiência de diariamente perceber as várias nuances do comportamento discriminatório em sociedade.

Influenciado pelas histórias que acompanhava quando criança, Taiga é um jovem que cresceu com a idealização de que um herói é aquele que salva e protege mulheres, e aos 15 anos ao presenciar a performance de dança de Arima, apelidado de “Maria”, Taiga instantaneamente acredita estar apaixonado pela pessoa que viu no palco, no entanto, Arima repudia suas investidas diretas e fala que também é um homem.

Apesar da afirmação emblemática de Arima para Taiga, o personagem enfrenta conflitos emocionais em relação à binariedade, que é reforçada por todos ao seu redor. Algumas partes da narrativa mostram Arima sobrecarregado pelas expectativas alheias, que tentam reduzir suas possibilidades de autopercepção, categorizando erroneamente seu comportamento e características físicas ou não de acordo com estereótipos de gênero. Embora ocorra um conflito de aceitação, Arima expressa em uma cena que não se considera “nem um, nem outro” quando questionado sobre seu gênero.

Arima opta por não explicar sua não-binariedade aos que o discriminam, nem sente a obrigação de educar essas pessoas, a escolha é assertiva considerando o histórico do personagem, sua personalidade e a sua forma particular de resposta aos traumas vivenciados. Enquanto isso, a obra trabalha a perspectiva de Taiga, que inicialmente é apresentado de forma imatura, rasa, pouco atento ao mundo ao seu redor, demonstrando uma certa arrogância em sua autoconfiança. Entretanto, ele é um personagem que gradualmente se desenvolve começando a encarar o mundo com seriedade e adquirindo percepções mais complexas e empáticas.

Taiga encontra conforto nas convicções criadas por não querer seguir o exemplo de seu pai, mas também não se prende ao que definia inicialmente como correto ou “verdadeiro”, demonstrando que designa um espaço para ampliar suas crenças. Apesar de ter vários impulsos imaturos ao longo da trama, ele sabe lidar com os comentários cruéis de outros jovens, não se curvando ao suposto senso comum e seguindo o que seus próprios sentimentos ditam. Sua autoconfiança é um complemento importante na construção da sua relação com Arima, fazendo com ambos sigam em direção ao amadurecimento e ao conforto de superar a solidão ao lado de uma pessoa que genuinamente quer o seu melhor, sem esperar que você se encaixe em expectativas que não são suas.

Arima é sabiamente a inspiração de Taiga, que não o vê como alguém que desperta pena, mas sim como uma pessoa que consegue ser competente, resistente e inteligente, apesar de sua trajetória dolorosa, ainda que a mesma não tenha sido superada. Arima convive com a dor sem desistir de ao menos tentar alcançar os seus desejos, e que apesar dos danos, da insegurança e dos conflitos, lida com o caos que lhe foi submetido.

A aparente simplicidade de Taiga transforma-se em coragem ao confrontar quem tenta ridicularizá-lo ao acolher seus sentimentos e identidade, enquanto que os traumas irreparáveis de Arima não desaparecem em um passe de mágica, mas são abordados com responsabilidade, lhe dando a chance de evoluir em outros aspectos e entendendo que ele tem o direito de se apaixonar, viver, sorrir e sonhar. Arima consegue compreender um pouco mais de si mesmo à medida que  a história avança, e resgata partes de sua confiança anteriormente minada por diferentes pessoas.

Cada um é o herói e a inspiração do outro, subvertendo por completo suas noções iniciais do que seria o heroísmo.

Comentários extras

Em algumas situações, ler obras que são muito elogiadas pelo fandom causa receios, uma possível decepção é facilitada quando algo é reforçado por expectativas tão altas, mas Boy Meets Maria é uma surpresa agradável, trazendo consigo a carga de expectativas que poderiam não ser atendidas, considerando que podemos apresentar nossa interpretação particular dentro de uma obra tão simbólica e muitas vezes implícita, mas os elementos subjacentes ajudam a fomentar discussões relevantes, os temas abordados podem apresentar aos leitores novas perspectivas além do que já estão familiarizados e a obra concede um contexto realista e condizente com a idade dos personagens e as respostas emocionais à situações extremas.

A obra também ironiza as percepções de papéis de gênero mesmo nas ilustrações da capa, como formidavelmente é iniciada com uma página colorida dos quartos dos protagonistas e um espelho central em cada painel, reafirmando o contraste inicial dos personagens antes do desenvolvimento de sua relação, sendo o Taiga egocêntrico e Arima fugindo da própria imagem. O Taiga, inclusive, combinou precisamente a sua confiança com a forma natural de negar a influência do gênero na construção do seu afeto, sendo uma representação de pessoas que conseguiram perceber e aceitar sua orientação sexual de forma espontânea.

A separação entre as dúvidas que são de Arima e o que era projetado pela sua mãe ao criá-lo como uma garota poderia ter sido abordada de forma mais nítida. Também seria emocionante observar Arima crescer finalmente fazendo as coisas que tinha vontade, sem a pressão de se encaixar em um dos papéis que tanto o limitaram.

Que recordemos de Peyo pela sua magnífica contribuição artística no mundo dos mangás!

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