MB Review: Um Conto de Mil Estrelas #01
Thien é o filho mais novo de um antigo General militar da Tailândia, então cresceu com quase tudo que o dinheiro pode comprar, entretanto, ao descobrir que desenvolveu miocardite e estava em um estágio onde seria necessário um transplante de coração, a realidade o aflige de modo que sua resposta ao desespero é a autodestruição, através de drogas, álcool e qualquer ato de rebeldia que o fizesse sentir vivo nos momentos que pareciam ser seus últimos.
Após uma discussão com sua mãe, Thien acaba perdendo a consciência e ficando em estado crítico, mas a sorte lhe deu uma segunda chance, já que uma pessoa doadora de órgãos com um coração compatível para o transplante havia falecido no mesmo dia em que Thien foi internado. Agora, com um novo coração, Thien começa a refletir sobre algumas das suas escolhas de vida, mas principalmente começa a desenvolver uma curiosidade quase incontrolável sobre quem era a antiga dona do coração que o fez permanecer vivo, e quem era o homem na foto tão emocionalmente guardada pela doadora…
A obra de origem tailandesa e de autoria de Bacteria está completa com dois volumes. Embora a novel disponha de um tom um pouco mais fantasioso em relação à conexão que Thien sente com sua doadora, chegando ao ponto de seguir seus passos como professor voluntário em uma região afastada, muitos dos aspectos retratados também podem ser uma referência a flutuações emocionais que alguém pode sentir após ultrapassar uma crença firme da morte iminente. Thien começa a avaliar seu comportamento, o que faz sentido após receber o transplante de um órgão vital. É uma situação onde a autora precisa construir uma narrativa do impacto das circunstâncias na vida do personagem, e abre margem para inúmeras possibilidades, já que o próprio ser humano é instável e imprevisível após uma experiência indiscutivelmente extrema.
Apesar da questão do transplante deixar um espaço confortável para a criação de um enredo com a possibilidade de múltiplos direcionamentos, a novel segue um teor tranquilo e centrado na evolução do protagonista, conta com momentos de resgate da instável personalidade e criação afortunada de Thien que, afinal, foi um garoto que jamais passou por uma grande adversidade, a não ser pela questão de saúde. O garoto foi criado em uma família de extrema riqueza e abundância, com acesso aos bens materiais acima do que a maioria da população poderia sequer sonhar.
É interessante que a trama nos dá um tempo para essa adaptação, balanceando o contra-ataque emocional de Thien com o seu “eu” antigo que pela maior parte de sua vida só conheceu uma única realidade repleta de satisfações, em uma redoma imaginária que o limitava de reconhecer a sociedade por outra perspectiva ou associar-se intimamente com alguém de classe social menos abastada, mas ele agora é um adulto que precisa conviver em uma aldeia afastada com um povo que vive sem os mesmos privilégios.
Apesar de a obra ser um romance, o primeiro volume é um reflexo das inseguranças e dúvidas do protagonista, tendo um foco na sua relação com o mundo, o novo mundo, mas também inserindo lentamente os elementos de um futuro afeto arrebatador. Embora alguns eventos sejam bastante previsíveis, uma palavra que parece ajudar a definir a obra seria “aconchegante”, pois sim, é mostrado um mundo desconhecido para Thien, mas diferente das expectativas das pessoas ao seu redor, essa ótica é muito mais positiva do que sofrida, e mesmo quando há menção de algo que irrita profundamente os lados imaturos de Thien, isso é levado com um tom humorístico que ajuda na leveza da leitura ou é uma atribuição que irá auxiliar no autoconhecimento e independência do protagonista.
Para aqueles que já assistiram a série derivada, disponível na plataforma Viki, devem ansiar pela introdução do personagem Phupha, o capitão que possui várias nuances que parecem imperceptíveis para Thien. Phupha, que à primeira vista parece inabalável em sua seriedade, é construído de forma oposta ao senso inicial de Thien.
Assim, o capitão que parece indiferente pela visão imatura do protagonista, é trabalhado pela própria narrativa agindo como alguém genuinamente preocupado e caridoso, e em alguns momentos da leitura do primeiro volume, são sutilmente lançadas informações sobre o passado de Phupha e a construção da sua personalidade, sua forma de agir e seus dilemas emocionais. O Phupha é um personagem autêntico, com um histórico que trabalha e confirma algumas suposições específicas sobre seus reais sentimentos.
Mesmo com duas personalidades que tanto se chocam, formando um verdadeiro banquete de “enemies to lovers”, a conexão que vai se instalando entre Phupha e Thien tem um ritmo encantador, então a química entre os dois personagens é prazerosamente trabalhada, com momentos pontuais de tensão que são bem adaptados no contexto e aparecem na hora certa. O ponto de vista, que é centrado em Thien, não apaga a relevância e a presença forte de Phupha desde sua primeira aparição, a obra consegue destacar a importância de Phupha por vários ângulos da sua relação com diferentes personagens.
Um destaque realmente intrigante é que Thien se percebe como impostor em muitos momentos, não aceitando a adaptação com o título de “professor”, mas não por falta de interesse, e sim falta de segurança, mas principalmente falta de sentir que ele fez uma diferença no mundo, ou que ele teve intenções genuínas. E a autorreflexão sobre intencionalidade e egoísmo oferece ao personagem humanização e um tanto de humildade, já que ele se importa o suficiente para questionar sua competência e trabalhar em formas de contribuir no seu novo “lar”, mesmo que ele não consiga perceber o seu desenvolvimento de altruísmo, e tenha uma percepção de si mais negativa do que demonstra a realidade de suas ações.
Enquanto no início do livro temos a menção sobre equilíbrio e cultura do mérito tailandês, no decorrer do volume temos situações que remetem ou desenvolvem esses aspectos culturais, enquanto nos é apresentada a dinâmica de riqueza onde as normas sociais buscam a padronização completa, minando qualquer individualidade que venha a divergir da idealização do seu posto social, tornando o indivíduo a esponja que absorve as expectativas de classe. Já no outro extremo, temos pessoas lutando pelo acesso ao básico, ou sendo usadas por aqueles com privilégios, sem direito a uma resposta. Pela ótica da obra, os sonhos podem ser suprimidos em diferentes cenários caso não haja equilíbrio, seja no excesso ou na falta, reforçando a complexidade do comportamento humano, mas sem nulificar as claras vantagens de uma criação luxuosa como a de Thien.
A novel é muito fácil de digerir, sendo uma leitura que você pode acabar em uma tarde, tanto pela simplicidade, como pelo seu ritmo que instiga curiosidade e expectativa, e ela carrega vários aspectos culturais que podem ser interessantes para um público amplo, mesmo entre aqueles que conhecem pouco sobre o povo Akha ou tradições e crenças tailandesas. O primeiro volume termina com uma situação que cria expectativas para outros tipos de desenvolvimento além da evolução pessoal de Thien.
Edição brasileira
A edição é bastante confortável para leitura, com um tamanho de fonte ideal, e coloração de folhas agradável para leituras extensas. Conta com notas da autora, e uma breve explicação sobre os Akhas na Tailândia, além do glossário para terminologias que não teriam uma tradução exata, e foram preservadas no texto. A arte da capa, apesar de esteticamente bonita, não me pareceu ter a conexão que eu esperaria com a obra, entretanto, essa percepção é algo pessoal como leitora e não necessariamente reflete as sensações de demais leitores, já que toda leitura é uma experiência individual através de olhares distintos.
Dessa vez, o elogio vai para a tradução, que em termos de fluidez é muito coerente. Enquanto isso, a versão oficial dos Estados Unidos teve duras críticas pela tradução mecanizada e cheia de adaptações que causaram confusão nos leitores.
O espelho da realidade na ficção – um pouco sobre Akhas
Embora em uma obra ficcional, é refrescante observar uma abordagem que não sugere a banalização da cultura de um grupo étnico. Apesar de a arte não ter regras ou imposições, quando alguém decide escrever sobre grupos ou culturas que de fato existem, se torna um tópico efetivamente sensível, afinal, você lida com aspectos importantes para pessoas reais.
A novel sugere uma relação demasiada positiva entre o antigo rei da Tailândia, conhecido como Rama IX, e a população Akha, mas brevemente indica algumas situações preocupantes para o grupo étnico, como questões de falta de recursos, preconceito e perigos ou ataques em potencial.
O povo Akha por muito tempo, principalmente nas décadas de 50 e 60, relutou contra a reversão da memória de seu povo, mas com expansões de movimentos políticos e de poder, parte da cultura já foi perdida e algumas novas gerações sequer conseguem contato com as crenças e hábitos que, para muitos, faziam parte da sua identidade étnica de dimensões complexas e únicas.
Como resultado, grupos missionários, com seus avanços inclementes do proselitismo¹, tornaram uma boa parcela da população aderente ao cristianismo, seguindo diferentes vertentes. Apesar disso, a obra não contém esse viés e foca em demais aspectos multiculturais.
Para mais informações atuais, foi utilizado como referência o artigo “Digital Preservation on Identity of Hill Tribes of Northern Thailand”, de Niracharapa Tongdhamachart e Piangpen Tommanon.
¹ Prática de conversão a ideais ou uma religião. Muito explorada por grupos missionários.