MB HQ’s – Stuck Rubber Baby: Quando viemos ao mundo

Quando Cassius Medauar saiu da JBC em junho de 2019, o mercado editorial levou um choque. O editor do Dragão havia sido o rosto da marca por muito tempo, além de ter sido um dos responsáveis pela ótima reformulação na editora nipo-brasileira, em matéria de comunicação com o público.

Então, quando o Bacanudo-sensei, após um ano, assumiu as rédeas da Conrad, uma editora que estava distante de seus dias de glória, a especulação começou. O que seria dessa “Nova” Conrad, que agora possui poucos direitos de publicação, como os de Gen Pés Descalços e Calvin e Haroldo?

Seja pela sorte ou pela atuação de Cassius como editor-chefe, a Nova Conrad tem sido um acerto imenso. Apostando na diversidade de títulos, tanto referente a nacionalidade quanto a gêneros, tendo anunciado e publicado autores e autoras do Brasil, Chile, Argentina e Coreia, a editora, mesmo ainda não voltando ao ramo de mangás japoneses, consegue voltar ao mercado aos poucos, mas com uma nova força em seu catálogo que chama para si diversos holofotes.

E é justamente sobre um desses acertos gigantescos que iremos falar hoje. Stuck Rubber Baby – Quando Viemos ao Mundo, escrito por Howard Cruse.

 

Assim como no quadrinho, este texto merece uma apresentação para contextualizar a importância do autor, para que quando falemos de sua obra, dê pra entender o peso que ela carrega.

Howard Cruse foi um dos pioneiros dos quadrinhos LGBTQIA+ nos EUA. Nos anos 80, foi convidado por Denis Kitchen para editar uma antologia de quadrinistas LGBTQIA+, a Gay Comix. Embora o título tenha sido publicado até 1998, Howard editou apenas as 4 primeiras edições, mas isso foi o bastante para que o mercado underground tivesse seus olhos voltados para ele. Além disso, Howard foi incisivo em sua decisão de que a revista tivesse a mesma quantidade de quadrinistas homens e mulheres, o que trouxe notoriedade para quadrinistas lésbicas, ainda mais escanteadas do que quadrinistas gays.

Sua trajetória foi um ato de coragem e tanto. Se assumir e “sair do armário”, além de encabeçar uma revista dessas, poderia prejudicar ou até mesmo acabar com sua carreira na época. Então, quando em 1990, Mark Nevelow perguntou a Howard sobre o que ele queria escrever, Howard teve um susto. Mark era o editor da Piranha Press, o selo alternativo da DC Comics. Nessa hora, a ideia de sua história já estava clara em sua mente. Ele iria escrever um quadrinho semi-autobiográfico sobre sua vida no sul dos EUA enquanto gay enrustido nos anos 60.

Assim, chegamos a Stuck Rubber Baby.

Como já foi dito na introdução logo acima, Stuck Rubber Baby – Quando Viemos ao Mundo conta a história de Toland Polk, um rapaz que nasceu e cresceu no sul dos EUA, na cidade fictícia de Clayfield. Desde criança incomodado com sua sexualidade, Toland constantemente fazia esforço para ser hetero.

Sua insistência em “curar seu lado gay” só era reforçada por seus arredores. Negros ainda eram vistos como selvagens, a injustiça racial se demonstrava forte e os crimes da Klan constantemente abafados por mídias e policiais corruptos. A injustiça para LGBTQIA+ não era mais branda do que a para negros. Gays eram vistos como pervertidos, desviados, invertidos. Portanto, Toland acredita que, com o estímulo certo e com o tempo, poderia achar uma mulher para se apaixonar e poder se “desinfectar desse problema”.

Ele encontra esta figura “salvadora” em Ginger Raines, uma estudante ligada a ativismos sociais e, com isso, Toland começa a entender um pouco melhor sobre si ao se ver apaixonado por ela, além de conhecer mais sobre o racismo, sobre homofobia e sobre a sociedade. O garoto começa a participar de protestos contra o preconceito, porém, isso se mostra algo muito perigoso.

É difícil, e talvez até uma missão ingrata, tentar resenhar e falar sobre o que acontece na história. São diversos os temas abordados, as situações e os pensamentos vistos. Não só isso, mas também a galeria de personagens: Toland; sua namorada Ginger; seus amigos Mavis e Riley; Sammy Noone, o amigo abertamente homossexual; a irmã de Toland, Melanie, e seu marido extremamente conservador, Orley; o pastor e ativista social negro, Harland Pepper; sua esposa, Anna Delyne; Esmereldus, uma drag queen que se apresenta em uma boate gay…isso apenas para citar alguns.

A lista acima não foi feita de forma impensada ou para impressionar. Todos esses personagens são completamente relevantes para a história, assim como muitos outros.

Toland, conhecendo mais deste mundo “alternativo”, acaba vendo a união que há entre as minorias sociais. LGBTQIA+ e negros frequentando os mesmos lugares, mesmos bares, mesmas boates. Um protegendo o outro. Um conhecendo um pouco das dores do outro. E ambos fugindo de uma sociedade que os quer mortos.

A arte acompanha com primor a densidade exigida, mesmo que completamente em preto e branco. Cada página é extremamente detalhada, cada personagem é único e facilmente reconhecível, isso sem contar no trabalho de hachuras do autor. É de uma vivacidade esplêndida. Atentemo-nos à questão narrativa. Diversas vezes um quadro fica sobreposto ao outro, ou balões se conectam um ao outro conduzindo seus olhos a um momento específico. Tudo isso gera um dinamismo incrível na história.

Mas não se engane se pensa que, por trazer um dinamismo interessante, a história pode ser lida de uma vez. Pelo contrário, não a leia com pressa. Como falei, são muitos detalhes para prestar atenção, além de ter uma quantidade considerável de texto. Considerando só isso, já seria um quadrinho para demorar-se na leitura. Mas tem um outro ponto crucial que me fez demorar a ler e que pode fazer com que você demore também.

O embrulho no estômago.

Não são poucas as vezes que o quadrinho joga algumas coisas pesadas na nossa cara. Seja com cenas racistas, seja com reflexões sobre a vida, ou até sobre o papel de uma pessoa que não faz parte de uma minoria em específico dentro do ativismo a favor daquela causa.

Toland, felizmente, não ocupa o estereótipo de “salvador branco”. Ele demonstra ter alguns pensamentos racistas enquanto criança, embora bem menos que a maioria. Colocando de forma simples, ele inicia sua jornada como o famoso “Isentão”. E, mesmo sem querer, acaba colocando seus problemas à frente dos outros, até mesmo  de uma forma negativa. E não apenas na parte de ativismo, mas na parte pessoal. É um comportamento perfeitamente normal, humanizando o personagem.

E, infeliz ou felizmente, as partes mais pesadas, nas quais você recebe os socos mais fortes, não são relacionadas à Klan, mas sim a como muitas pessoas comuns vêem tudo isso. A como os policiais “passam pano” para atitudes claramente racistas e homofóbicas. A como a mídia deixa com que as notícias não culpabilizem os brancos heteros.

O soco no nosso estômago é em como tudo isso é normatizado. E ao mesmo tempo, atual.

Dói principalmente ao ver coisas ditas por Orley, um dos personagens mais retrógrados da história. Mesmo que a história se passe na década de 60, muitas frases ditas por ele são assustadoramente atuais. Não só ele, mas os outros núcleos que apoiam a ideia anti-integracionista, falando coisas como “Sei que essas pessoas [se referindo a pessoas abertamente racistas] são extremistas, mas não estão errados”. Tudo isso acaba dando até uma sensação de desesperança ao lê-las hoje em dia. Ficamos pensando “Mais de 50 anos se passaram e nada mudou?”

Mas, ao mesmo tempo, mesmo com os vários Orleys, ao ir lendo o quadrinho, várias outras coisas puderam ser perceptíveis. Sim, ainda estamos longe do ideal, mas já tivemos mudanças. Mesmo que ainda existam os mais diferentes tipos de pessoas com preconceito contra minorias sociais, tivemos sim nossos avanços,em questão à consciência social, conquista de direitos e políticas integracionistas. Ainda estamos longe do ideal e ainda reproduzimos muito do passado, mas estamos bem melhores do que eles.

Falando agora da parte gráfica e editorial, a Conrad acertou em cheio. O quadrinho tem capa dura, um verniz no título e conta com dois textos introdutórios. Um de Alison Bechdel, uma das quadrinistas mais importantes do cenário alternativo dos EUA e um de Ed Sedarbaum, viúvo de Howard. Além disso, o final contém mais de 15 páginas de extras contando sobre os bastidores da produção do quadrinho e com depoimentos de pessoas próximas. Todos esses pontos mostram realmente que é uma Edição Comemorativa. O quadrinho tem 24.4 x 17.6cm, 240 páginas e preço de capa de R$79,90.

 

Encerrando essa resenha, queria ressaltar uma coisa que me chamou demais a atenção.


O título.

O título da HQ, Stuck Rubber Baby, significa algo como “O filho da camisinha ressecada”. Além de ter uma relação forte com a história, o título passa uma segunda sensação. Uma sensação pesada. Presume-se que o filho que nasce do rompimento de um preservativo é um filho indesejado. E esse é um ponto que toca bastante em todo o sentimento dos personagens e como eles se sentem quanto aos seus arredores, suas famílias, a sociedade, as localidades. Tudo ao redor grita o quanto queriam que eles fossem embora. O quão indesejados cada um deles são.

E nisso, o subtítulo da Conrad vem em um perfeito contraste.

Para cada vez que a sociedade os manda embora, seja para fazer o sul dos EUA ser branco de novo ou para que parem de atrapalhar a vida “normal”, eles têm uma resposta.

Não.

A opressão precisa ser combatida. Pode não ter sido totalmente vencida, mas todos os que lutaram para que ela acabe, deixam claro que estão ali para ficar. Esse foi um dos momentos em que negros e gays tiveram que ser reconhecidos. É o momento em que gritam “Nos ouçam. Nossas vozes estão aqui. Nós somos importantes! Nós existimos! Não somos animais, ou pervertidos! Somos pessoas, assim como vocês! E vamos fazer vocês nos notarem. Esse é o momento quando viemos ao mundo.”

 

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