MB Animações: Neon Genesis Evangelion – A obra que gritou ‘’EU’’ no coração do mundo

Ano de 2015. Cidade Tokyo-3. Passou-se quinze anos do cataclismo conhecido como “Segundo Impacto” que causou o fim de metade da raça humana e milhares de espécies no mundo. Nessa cidade, acontecia o conflito entre a ONU e uma criatura chamada Anjo, causando destruição, enquanto chegava na base da organização paramilitar Nerv um garoto de 14 anos, no caso, Ikari Shinji. O filho do comandante da Nerv, Ikari Gendo. 

Ele não sabia o que iria fazer, foi convocado pelo seu pai imediatamente e aceitou ir na esperança de que recebesse um pouco de atenção. Foi enganado, Gendo queria a sua presença naquele lugar apenas para ser útil de uma forma: Que pilotasse a Unidade Evangelion 01 para derrotar o Anjo que atacava. 

Ikari Shinji nunca pilotou um EVA, ele não deseja, é aterrorizante, mas sufocado pela urgência e o perigo, decide não fugir, e agora, o garoto de 14 anos começa a sua história como um piloto da Unidade Evangelion 01, grandes robôs automatizados para a luta contra os Anjo.

A Animação

Neon Genesis Evangelion é um marco na mídia de animações. A obra é um ícone cultural, sendo aclamada pela crítica e por fãs espalhados no Japão e em todo o mundo. Sua produção foi feita pelos estúdios Gainax e Tatsunoko, tendo seu primeiro episódio transmitido em 04 de outubro de 1995 pela TV Tokyo e fechando com 26 episódios. A mente fundamental por trás dessa reverenciada obra, é o brilhante diretor e seu criador, Hideaki Anno. Ele que já disse em entrevista sobre como Evangelion pode ser descrito como a sua própria alma. Obrigado Hideaki, por tudo.

Mas antes de darmos início, é essencial dizer que não iremos nos alongar sobre o filme “The end of Evangelion” de 1997, que logo terá uma review aqui na MB Animações, então aguardem. Porém, é importante citar sobre a sua existência, que está ligada aos “abomináveis” e fundamentais episódios 25 e 26, que foram dirigidos de uma forma bem diferente de tudo apresentado anteriormente, por opção da direção devido a falta de orçamento que a produção acabou tendo.

Infelizmente, até ameaça de morte e invasão no estúdio Gainax aconteceu, tamanha a insatisfação dos espectadores pela não apresentação de um final que queriam, daí o motivo do filme existir. 

O filme complementa esses episódios e também apresenta uma conclusão numa perspectiva de tom “diferente” que pode ser encarado como resposta por parte do Hideaki Anno à violência sofrida por conta desses episódios finais. Fica aqui como recomendação essencial que assistam o filme (no catálogo da Netflix) se você apenas assistiu os 26 episódios da série de 1995. 

Obs: Não pulem os episódios 25 e 26! De forma alguma! Eles são necessários, junto do filme, se você deseja ter uma compreensão melhor sobre o final do anime. 

Simbolismo interno de Evangelion: Uma composição estrutural

Tudo em Evangelion é muito conectado e tem no mínimo sentido, como também a sua simbologia interna, que é um vasto apanhado de referências religiosas e simbolismos místicos (judaicas, cristãs, xintoístas, etc) ou os modelos psicanalíticos de Sigmund Freud (Id, Super-Ego, Ego), entre outras diversas referências que são inseridas na obra.

São coisas que inclusive chegam a ser um verdadeiro e complexo mistério para vários espectadores, devido a falta de conhecimento prévio sobre as diversas referências externas presentes na série. Não se sinta mal se você não tiver entendido muitas coisas, particularmente muitos ficam com esse sentimento. Mas ainda existem coisas que todos possam pegar e ter uma boa compreensão, como por exemplo, o A.T. Field (Campo de terror absoluto) que se refere  “A barreira que todos têm em seus corações” como explica Kaworu no episódio 24. E “O dilema do Ouriço”, uma parábola de Schopenhauer mencionada pela Ritsuko no terceiro episódio, em alusão a dificuldade que Shinji tem em não conseguir fazer amizades ou ter conexões humanas pelo medo de ser ferido, ou acabar ferindo, ao se aproximar demais de outras pessoas.  

Essas referências são mais que funcionais narrativamente, elas se tornam símbolos estruturais dentro desse mundo, estando muito bem colocados em seus lugares, e não ali apenas como figuração básica.

“Choque de cultura.”

E aqui abrimos o ponto de que, apesar de toda a importância da simbologia existente no mundo de Evangelion, elas não são exatamente o que podemos chamar de ”a matéria principal’’ do anime. Sim, são bem atrativas e as referências externas estão bem inseridas como analogia. Mas essas simbologias, no geral, estão mais como elementos componentes e não como a peça principal que faz o nome da obra. A matéria principal, ou a camada principal de Evangelion, são os seus personagens, com uma representação extremamente humanizada do ser humano abordando os porquês de seus comportamentos e conflitos existenciais.  

Obviamente, o objetivo secreto da SEELE (organização que chefia a Nerv) e de Ikari Gendo é no caso o “Projeto de Instrumentalização Humana”, mesmo que para os dois lados existam intenções diferentes de execução, é sim relevante, sendo algo citado ainda no segundo episódio, e também reforçado no decorrer da história, até que seja dado o seu início. A Instrumentalização Humana e todo o processo necessário para sua execução, além da própria existência da Nerv para combater os Anjos (que estão atacando durante toda a série) são elementos estruturais para que a narrativa de Evangelion chegue até a sua conclusão. No entanto, até em relação a isso, as peças principais que conduzem, e irão ser o centro de todo o evento final, são os personagens, na busca para encontrar uma resposta às necessidades que surgem de suas individualidades tão quebradas e incompletas. 

A relevância de Evangelion como um ícone cultural e o que torna o anime com aquele toque ‘’especial’ está mais ligado aos seus personagens tão humanizados do que todo o simbolismo presente na obra.

As crianças no mundo Evangelion e a existência Ikari Shinji

A abordagem da animação é sobre a complexidade das facetas humanas, muito bem representada pelo núcleo de personagens no contexto de um mundo que acontece o Segundo Impacto, causando o colapso geral da vida em Evangelion e levando ao fim de metade da humanidade, restando aos sobreviventes essa necessidade de trabalhar duro para reconstrução e resistir, o que é algo que precisa ser levado em destaque para aprofundarmos mais sobre os personagens. 

Em certo momento no anime, a piloto do EVA-02, Asuka, diz não entender essa geração que passou pelo Segundo Impacto, que é a geração de personagens como Misato, Ritsuko e Kaji, apenas adolescentes durante o evento. Olhando para esses personagens em alguns momentos durante a série, demonstram possuir enormes dificuldades de aceitação e de serem honestos uns com os outros, mesmo sendo adultos e com toda a experiência adquirida para cumprir suas responsabilidades. Eles possuem atrofias na personalidade, como traumas e complexos, em exemplo a Misato que durante um desabafo com Kaji, dizendo ter o deixado por medo de se apaixonar com alguém que lembrava o pai que odeia, e a Ritsuko que disse ter chegado a odiar sua Mãe como mulher, e mesmo assim tendo ela como referência para fazer exatamente a mesma coisa que ela fez, se submetendo a tudo para satisfazer o mesmo homem. 

Sabemos que Evangelion não expõe muita coisa de forma direta, tem coisa que se apresenta ali no sub contextos para os espectadores irem buscar e compreender (embora temas universais estão presentes para fácil identificação). Mas a série não deixa de apresentar a base e origem dos conflitos pessoais de seus personagens. E a origem de complexos ou traumas de personagens como os exemplos de Ritsuko e a Misato, e principalmente as crianças pilotos das unidades EVA, está na ausência de uma boa estrutura familiar durante a fase infantil de cada um, principalmente relacionado ao abandono de amor e afeto por parte do núcleo familiar, que é o primeiro contato fundamental que nós, seres humanos, temos ao nascer. 

Essa questão impacta diretamente em como esses personagens tentam, de alguma forma, buscar aquilo que nunca tiveram essencialmente para formar as suas personalidades individuais (afeto), para substituir ou suprir, mesmo que seja algo que não os satisfazem plenamente, fazendo se sentirem mais quebrados, sozinhos e sem condições para lidarem com o próprio estado emocional/psicológico.

No caso de Ayanami Rei, a primeira criança do EVA-00, uma das principais personagens de Evangelion mas que aparenta não esboçar nenhum traço de personalidade desenvolvida, existindo apenas com a finalidade de ser útil como um instrumento nas mãos de Gendo para alcançar o seu plano. Narrativamente, a função da personagem seria “apenas” isso, em como ela é uma garota que durante parte de toda a série está análoga a figura de um boneco (clone de Yui, receptáculo de Lilith) que não tem a sua personalidade formada, sendo substituída quando necessário. Isso tudo resultando numa complexa confusão de sua identidade, a incompreensão sobre afeto e sobre o que representa se relacionar com os outros.

No caso de Asuka Langley Soryu, a segunda criança do EVA-02, que chegou à base da Nerv em Tokyo-03 direto da Alemanha, a primeira impressão que temos sobre ela é de uma garota muito forte, independente, sem medo algum de provar a sua genialidade como piloto de EVA. Porém, no decorrer da série, vemos que isso é apenas uma fachada para sustentar a si mesma de seus traumas relacionados ao abandono afetivo e a sua distorção. 

Numa outra abordagem desse tema, é sobre a garota que, aos 4 anos, perdeu a sua mãe e o afeto que tanto desejou por parte dela, de forma cruel. Asuka viu a sua mãe ficar mentalmente instável, acabou sendo agredida por ela fisicamente, algo que não é explícito no anime, sendo essa violência representada por uma analogia também de uma boneca, que é semelhante a Asuka. E, para piorar, ela ainda assiste sua mãe tirar a própria vida.

Esses eventos traumatizaram demais Asuka, que adotou um enorme senso de orgulho ao se tornar piloto de EVA, se agarrando nisso como um mecanismo para tentar se proteger de suas feridas. Algo que resultou na sua dificuldade de olhar para o outro e se relacionar de forma confortável. 

Na ausência do afeto, distorcidamente, ser reconhecida como um gênio piloto é a forma que Asuka encontrou para “recebê-lo” sem que precise confiar demais nos outros e ter que se aproximar demais, para não acabar se ferindo novamente. Ao mesmo tempo, ela ainda continua se ferindo, por conta da solidão que a ausência de afeto causa. Esse é o orgulho de Asuka, para que pudesse resistir firme.

“Não olhe para mim”

E agora iremos fechar no caso principal, que é principal por conta da função e destaque que esse personagem tem durante toda a série, Ikari Shinji, a terceira criança e piloto do EVA-01. 

Assim como Asuka, Shinji perdeu a sua mãe, Ikari Yui, também aos 4 anos e logo após foi abandonado pelo pai, deixado para ser cuidado por outros. Apesar da pouca semelhança, a abordagem do abandono em relação ao Shinji é bem diferente do que aconteceu com Asuka. O garoto nunca recebeu qualquer demonstração de afeto ou contato com o seu núcleo principal familiar (Gendo/pai, Yui/mãe), enquanto Asuka manteve contato com o pai, que casou com uma outra pessoa e teve uma madrasta, mas esse contato nunca foi profundo e Asuka até descreve como superficial.

Isso não é uma tentativa de comparação de seus traumas, mas sim para destacar a diferença de abordagem sobre o abandono afetivo entre esses personagens, a diferença que essas crianças têm em questão na forma de pensar e o que fizeram para sobreviver com os traumas causados na infância. Shinji e Asuka tem semelhanças, mas são personagens humanizados com universos totalmente diferentes ou opostos.

“Você não pode unir o abismo entre sua própria verdade e a realidade dos outros.”

O trauma deixado pelo abandono em Shinji impactou diretamente na formação de sua identidade, fazendo com que ele não consiga reconhecer a própria existência como a de um indivíduo que poderia ser digno de afeto. Ele se odeia, possui um enorme complexo de inferioridade, pois o seu trauma o faz acreditar inconscientemente na sua percepção fechada, e não amadurecida, de que poderia encontrar algum afeto e não ser deixado de novo somente sendo útil, aceitando e atendendo todas as expectativas que ele imagina terem sobre si. Tudo para não ser odiado, não ser deixado e principalmente, não se ferir.

Shinji está constantemente tentando, de forma complexa, encontrar isso nos outros e fazer quase tudo que os agrade. ‘’Ele acostumou a obedecer tudo o que mandam’’, diz Ritsuko sobre o garoto. Todas essas ausências problemáticas para uma criança as condicionam para o constante conflito pessoal, entre dúvidas e questionamentos sobre coisas que eles não sabem como lidar e o que deve ser feito. O afeto familiar é o aprendizado do “Eu”.

“Eu só temo ser odiado”

A jornada de Shinji em Evangelion é bem isso, essa constante de um personagem tão complexo sendo bombardeado de novas experiências, entre algumas em momentos episódicos da série, que até abrem uma boa possibilidade para que ele consiga melhorar e se aceitar como indivíduo. No entanto, as experiências, na maior parte da história e no contexto de um mundo e a sua realidade, com a existência de criaturas abissais como os Anjos, e essa urgência do perigo como pressão (muita vezes feitas por parte de adultos que também não apresentam um mínimo de preparo emocional para lidar com crianças) são bem cruéis. É aí que realmente paramos para compreender e ter a noção de que são adolescentes, crianças com histórico de abandono e falta de amor.

Especificamente para Shinji, o ponto de perspectiva principal do espectador, que sempre espera no outro o afeto, seja do seu pai, Misato, Asuka ou a Rei, é uma experiência bastante amarga, pois todos esses personagens estão internamente quebrados. 

É um pouco compreensível o fato desse personagem tão bem escrito, num retrato humanizado do ser humano e as facetas de sua natureza, ser odiado. Deixa de ser um pouco quando olhamos para as bases de seus conflitos, o porquê de seu comportamento e os devaneios que ‘’parecem’’ insuportáveis desse personagem, enquanto tenta sobreviver da única forma que aprendeu, e não pensar em como esse ser, Ikari Shinji, pode gerar tanto incômodo e até aversão. Mas é essa capacidade de mexer com a nossa estrutura de mundo, o nosso ponto de vista e toda a sua unicidade, que faz Neon Genesis Evangelion ser um anime especial e essencial para quem adora sair um pouco de sua caixa.

A representação da existência Evangelion gritando ‘’Eu’’ no coração de milhares de fãs em todo o mundo é real. E continua sendo.

Parabéns a todo o Evangelion. Parabéns para você também, caro visitante da MB Animações.

Neon Genesis Evangelion está disponível no catálogo da Netflix, dublado e legendado. Aproveite, assista!

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