MB Review: Bem-vindo à N.H.K
Conspirações, fobias sociais e muita comédia. Bem-vindo à N.H.K pode ser resumido nessas três características, mas isso tiraria muito do brilho que essa obra possui. Publicado no Brasil pela Editora Panini, em 2010, o mangá é uma adaptação do romance de Tatsuhiko Takimoto, que também ganhou uma animação homônima. Kenji Owa é o responsável pela serialização, que foi publicada na Shonen Ace de 2004 a 2007, e finalizado em oito volumes.
A versão do mangá diverge bastante do original literário, mas Takimoto acompanhou a série de perto. Bem-vindo à N.H.K narra a história da vida de Tatsuhiro Satō, jovem desempregado que abandonou a faculdade e agora vive isolado em sua residência, sendo sustentado pelos pais e sem nenhum contato social. Sato, assim como muitos jovens e adultos japoneses, sofrem do transtorno hikikomori.
O termo hikikomori se refere tanto à condição quanto às pessoas vítimas dela e foi cunhado pelo psicólogo japonês Tamaki Saito em seu livro Isolamento social: uma adolescência sem fim, de 1998. Hoje, esse conceito é definido como uma combinação de isolamento físico e social somada com um sofrimento psicológico que pode durar seis meses ou mais.
O transtorno foi considerado, inicialmente, cultural. E há razões para se pensar que a sociedade japonesa é especialmente suscetível a ele, diz Takahiro Kato, professor de psiquiatria na Universidade de Kyushu, na região Fukuoka, e pesquisador do tema.
“No Japão há um ditado muito famoso que diz: ‘O prego que se destaca leva martelada'”, diz Kato. “E as rígidas normas sociais, as altas expectativas manifestadas pelos pais e a ‘cultura da vergonha’ fazem com que a sociedade japonesa seja terreno fértil para sentimentos de inadequação e o desejo de querer se esconder do mundo.”
Disponível em: <Quem são os hikikomori, os jovens japoneses que vivem sem sair de seus quartos – BBC News Brasil>. Acesso em 30 set. 2021.
Assombrado com a sua condição e determinado a mudar de vida e voltar a trabalhar e se relacionar, Sato se une a excêntrica Misaki Nakahara e seu vizinho Kaoru Yamazaki (que também tem problemas sociais). Isso, claro, regado a muita comédia absurda e críticas sociais à sociedade japonesa.
E vocês podem estar se perguntando: o que a rede de tevê japonesa N.H.K tem a ver com fobias sociais e problemas psicossomáticos? Na realidade, a sigla NHK se refere a emissora de tevê Nippon Hōsō Kyōkai (Coorporação de Radiodifusão no Japão) mas para Sato, significa Nippon Hikikomori Kyokai, a Sociedade dos Hikikomoris do Japão. O protagonista acredita que a vinculação de programas otakus e o excesso de entretenimento da emissora contribui para o isolamento das pessoas e é tudo uma grande conspiração para gerar cada vez mais hikikomoris.
E aqui começam as críticas sociais do mangá. O excesso de entretenimento, as “realidades paralelas” oferecidas pelas produções otaku, todas são parte de uma grande alienação na qual muitos jovens estão presos e isso pode levar ao total isolamento, como também acontece com NEET – sigla significa “Not currently engaged in Employment, Education or Training” e categoriza jovens que não desenvolvem nenhum tipo de trabalho ou estudo e que não desejam se integrar ao mercado de trabalho.
A condição de isolamento de Sato – e de muitos outros na mesma situação – também dizem respeito às exigências sociais e profissionais do Japão, que são rígidas e já conhecidas por nós e exploradas por muitos outros mangás. A necessidade de “ser bem sucedido”, de “arrumar uma namorada” e “de ter um bom emprego e passar numa boa faculdade” é um espectro que paira sobre a juventude. E Sato também passa por isso, com medo de decepcionar sua mãe e não atender às expectativas de sua família.
É esse medo que faz Sato se associar a Yamazaki e juntos decidem criar um jogo virtual. E não é qualquer jogo, já que Yamazaki personifica outro tipo social muito conhecido, os viciados em pornografia. Determinados a ganhar dinheiro produzindo um Eroge (abreviação para Erotic Game – jogo erótico), os jovens iniciam suas pesquisas e trabalhos, mesmo que nenhum deles seja programador ou coisa do tipo.
E, a partir disso, muitos outros problemas sociais japoneses são criticados na série. No primeiro volume, e é algo que acompanhará Sato pelos demais, ele se torna um Lolicon. Fascinado por representações moe infantis (personagens femininas fofas), o protagonista se vê num poço sem fundo às portas da pedofilia, chegando até a fotografar garotinhas colegiais
Yamazaki sugere que Sato desvie seus interesses para garotinhas 2D, mas isso não torna o fato menos repugnante. O “problema” de N.H.K. é que tudo é retratado de forma tão satírica e absurda que é impossível não rir da desgraça de Sato. A face escura da realidade social japonesa escancarada e ironizada nas páginas de N.H.K. nos faz refletir sobre todos esses problemas sociais, que não são característicos apenas na sociedade japonesa, mas que estão se espalhando pelo mundo rapidamente na nossa geração. Jovens isolados, pessoas sem conseguir viver em sociedade, associados à práticas abusivas e destrutivas.
Não podemos deixar de citar a terceira protagonista dessa trama, que é a grande responsável pelo “tratamento” de Sato, Misaki Nakahara. A jovem aparece sem muitas explicações e oferece um tratamento para curar o hikikomori. Um contrato e sessões são estabelecidas e Misaki determina tarefas para que Sato cumpra e fique “curado” da sua condição. Isso garante muitas situações constrangedoras e embaraçosas para o rapaz, mas rende boas risadas e grandes reflexões.
Na busca da libertação de sua condição, acompanhe Sato em sua jornada. Um slice of life repleto de simbolismos e críticas, e regado a um humor imenso e escrachado. Os mangás podem ser um pouco difíceis de encontrar – visto que já fazem 11 anos desde sua publicação – mas a animação é bem fiel a história, e igualmente divertida.