MB Review: O Homem sem Talento

A editora Conrad sempre foi a frente do seu tempo, trazia mangás diferentes do padrão que era publicado na época, ao menos no Brasil, e surpreendia positivamente os leitores que davam uma chance às ousadas publicações da editora. Uma das pessoas que estava à frente da Conrad naquela época, Rogério de Campos, hoje é dono da editora Veneta. E felizmente, o espírito de ousadia ainda persiste. Tudo bem que hoje o mercado é mais maduro do que era na época, mas trazer mangás como “O Homem sem Talento”, de Yoshiharu Tsuge, foi um baita acerto.

“Munou no Hito”, nome original da obra, foi publicada em 1985 na revista Comic Baku, da editora Nihon Bungeisha, sendo finalizada em um único volume encadernado. É considerado um dos pioneiros do gênero watakushi (os quadrinhos do eu). Existem elementos da vida do autor no quadrinho, mas é preciso entender que não é uma obra autobiográfica, e sim, que apenas uma coisinha ou outra ali aconteceram na realidade.

Sinopse: O protagonista, alter-ego do desenhista, é um autor de mangá que se recusa a comprometer seu trabalho e ceder às pressões da indústria editorial. Diante das vicissitudes da existência, ele parece determinado a tornar sua vida uma estranha ode ao fracasso, vendendo pedras retiradas de um rio perto de sua casa. Pedras que ninguém parece ter interesse em comprar. De maneira lenta, mas persistente, o “homem sem talento” se coloca à parte de uma sociedade que não lhe interessa mais, enquanto sua esposa insiste em vão para que ele encontre uma maneira de dar uma vida digna à sua família. Ao longo das páginas, Tsuge transforma essa história de fracasso em um poema assustador e desesperado, mas com um toque de humor e uma irônica redenção.”

Sukezo Sukegawa, o protagonista, enfrenta um dilema que muitos artistas encontram: ele não quer abrir mão da essência de sua arte. Ceder à pressão da indústria, tiraria toda a “alma” de suas obras, pelo menos é o que ele pensa. Por causa da escolha de parar de desenhar os mangás (ofício que ele fazia bem, por sinal), a qualidade de vida de toda a sua família, composta por Sukegawa, sua esposa e seu filho, é impactada negativamente. O problema é que ele é acomodado. Não quer desenhar mangás por considerar sua arte refinada demais para ceder à pressão editorial, mas também não procura um trabalho que possa realmente colaborar com a renda familiar, já que a esposa trabalha entregando panfletos. 

A primeira alternativa do ex-mangaká é vender pedras exóticas para colecionadores. Perceba que quando ele decidiu ir para esse ramo, o mercado de pedras já estava em declínio. Mesmo assim, ele monta uma barraquinha nas margens de um rio. Porém, ele coloca à venda as pedras encontradas no próprio rio. Em outras palavras, as pedras que ele vende já não são as do tipo mais requisitado e, mesmo que fossem, quem compraria alguma pedra que pode ser encontrada gratuitamente alguns metros adiante? Como o negócio não funciona da forma esperada (óbvio, né?), ele começa a comprar máquinas fotográficas defeituosas, consertar, e vender, o que acaba sendo um pouco promissor no início, mas logo deixa de ser rentável. Ele ainda tenta abrir uma espécie de “pedágio” embaixo de uma ponte, para que as pessoas possam chegar ao outro lado pagando menos, e mais rapidamente que da maneira tradicional, mas o negócio também falha. Como se não fosse o bastante, Sukegawa faz uma rápida passagem pelo negócio de vender passarinhos raros, mas vocês já podem imaginar como tudo terminou. As “profissões” exercidas pelo personagem não ocorreram necessariamente nessa ordem, mas tudo bem.

Por conta dos sucessivos fracassos, e também da má vontade, de Sukegawa, a relação dentro de casa vai ficando cada vez mais delicada. A esposa, costuma chamar o personagem de “parasita” e faz pouco caso dele na frente do filho do casal, que é um menino que sempre está com um semblante triste, o que me fez sentir pena do pobre garoto, embora seja notável que ele gosta do pai e se preocupa com ele. Falando sobre semblantes, o rosto da esposa fica coberto com uma sombra por cerca da metade do mangá, ficando visível apenas a partir do momento em que a família vai realizar uma viagem e ela se anima com isso, porém, a viagem também não sai exatamente como planejado. Acredito que foi a forma que o autor encontrou para mostrar a insatisfação da mulher com a condição de vida que ela tinha. Foi uma sacada simples, mas achei criativa. É um mangá curto, se eu detalhar muito o desdobramento da trama aqui, vou acabar entregando coisas interessantes, então a partir daqui, prefiro deixar que vocês leiam. Tudo o que posso dizer é que, o quadrinho ser considerado um “ode ao fracasso” é justo, porque é realmente difícil ver alguém que não consegue ser bem sucedido em nada que tenta fazer, e abandona a única coisa na qual ele tinha domínio. Mas como disse anteriormente, ele também não se esforça muito, ainda mais se pensarmos que é uma história que se passa no Japão, um país onde, literalmente, pessoas morrem de tanto trabalhar.

A arte destoa bastante, às vezes vemos cenários bem trabalhados contrastando com os personagens desenhados de forma simplória, mas isso é claramente proposital. Em algumas ocasiões, o protagonista aparece desenhado de forma bastante detalhada também. É aquela coisa que sempre falo nas minhas resenhas de mangás mais antigos, o traço pode acabar causando estranheza em quem não está acostumado, já que, além de todo o contexto artístico da época, o autor ainda “brinca” com os desenhos. Mas eu particularmente achei que a arte casou bem com a atmosfera da história.

O Homem sem Talento é um mangá interessante, mas que não traz muitos dos elementos que são frequentemente associados com os quadrinhos japoneses pelo público de um modo geral, por isso, não indico a obra para um público mais casual. Porém, se você gosta de Gekigá, é entusiasta de mangás antigos e/ou com temáticas diferentes ou é fã do autor, com certeza é uma obra que vale a pena ter na coleção, ainda mais por ser volume único. O ponto negativo para mim é que, durante a leitura, eu senti falta de um “tempero”. Não sei bem explicar o que era, mas algo não me permitiu emergir totalmente na trama. Porém isso é algo mais pessoal do que um defeito propriamente dito. Mesmo assim, dou uma nota 8 para a publicação pois eu gostei bastante.

O mangá foi publicado pela editora Veneta em 2019, em capa dura, formato 16 x 23 cm, com cerca de 240 páginas ao preço de capa de R$ 64,90. O custo x benefício da edição é bom, mas com um desconto de uns 20%, fica ainda melhor. Caso queiram adquirir na Amazon.

Espero que tenham gostado do texto, nos vemos em breve!

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