MB Review: Vida à Deriva
Na resenha que fiz de “O Homem Sem Talento” (clique aqui para ler) elogiei a editora Veneta por manter o espírito da antiga Conrad, que se arriscava e trazia ao público brasileiro mangás que fogem da maioria dos padrões de quadrinhos japoneses publicados aqui. Felizmente, em 2021, a Veneta nos trouxe mais um mangá incrível, desta vez “Vida à Deriva”, uma obra autobiográfica de Yoshihiro Tatsumi, que conta não só a sua trajetória, como a história do gekigá, estilo que tem ganhado mais reconhecimento entre os leitores brasileiros justamente por conta de apostas de editoras como Veneta e Pipoca & Nanquim.
Vida à Deriva (Gekiga Hyouryuu, no original) foi publicado em 2008, mas sem serialização regular em revistas semanais ou mensais. Até onde consegui encontrar, ele foi lançado em por meio da Mandarake Manga Mokurou, uma publicação pertencente à Mandarake, uma franquia de lojas especializadas em mangás e derivados muito famosa no Japão. O mangá foi completo em 2 volumes, e recebeu o “Tezuka Manga Award”, um dos prêmios mais prestigiados dentro do mundo dos mangás. Além disso, a obra recebeu uma adaptação para live-action em 2011.
“Vida à Deriva foi escrita ao longo de onze anos. A obra é uma autobiografia que aborda a vida e a carreira de Tatsumi de 1945 até 1960, ao mesmo tempo em que narra a ascensão e o desenvolvimento dos quadrinhos japoneses e da própria sociedade japonesa. A história vai desde os primeiros quadrinhos amadores feitos com seu irmão Okimasa, a admiração e amizade com Osamu Tezuka, a produção incessante em um apartamento junto como outros mangakás e a relação com a cultura e modo de vida ocidental que tomam o Japão no pós-guerra.”
Yoshihiro Tatsumi se introduz na história como “Hiroshi Katsumi”. Todos os outros autores e personagens estão com seus nomes reais. Aqui acompanhamos a adolescência do autor, e em paralelo à sua evolução, vemos as transformações nos mangás, no mercado editorial japonês e a transformação do Japão em si.
Conforme o autor vai detalhando sua carreira profissional, ele fala sobre o cenário econômico e cultural do Japão naquela época, desde o pós-guerra até a recuperação e o início do milagre econômico no país. É um aspecto muito interessante, pois assim temos um panorama geral de todo o contexto, desde os atores que faziam sucesso, a popularização do cinema e da TV, a chegada da Coca-Cola, e assim por diante. Mesmo que pareça simples, isso ajuda muito na imersão do leitor. Além de termos muitos detalhes de sua vida pessoal e familiar em ordem cronológica, inclusive contendo datas precisas.
Quando Hiroshi ingressou nos mangás, a forma mais popular de ter acesso a esse conteúdo era por meio de aluguel, justamente por causa da economia frágil em que o país se encontrava. É nesse contexto que o protagonista começa a enviar seus trabalhos para as editoras. Nessa época, o formato mais popular de mangá era o de tiras.
Osamu Tezuka vinha revolucionando a mídia com uma quadrinização mais sequencial e dinâmica, muito inspirado pelos filmes da Disney. Hiroshi e seu irmão, Okimasa, eram grandes entusiastas dos trabalhos de Tezuka, e consequentemente, foram fortemente influenciados por ele. Apesar de sempre apoiar o irmão, Okimasa sentia uma certa inveja dele porque os mangás que Hiroshi enviava às publicações sempre recebiam prêmios e menções, enquanto ele mesmo não conseguia desenhar o tanto que gostaria por conta de um problema de saúde, pelo menos no início da história.
Por conta desses concursos que Hiroshi sempre prestava, ele conseguiu se encontrar pessoalmente com Osamu Tezuka, uma das pessoas que ele mais admirava e inclusive se tornou seu amigo, visitando sua casa e recebendo lições do mestre. A rede de contatos de Hiroshi foi se espalhando, e ele começou a fazer trabalho para várias editoras e a receber mais por seus mangás. Inclusive chegando no ponto de ter que recusar alguns trabalhos devido à falta de tempo ou por causa de contrato com outras editoras.
Sem dúvidas, uma das editoras mais importantes pelas quais Hiroshi passou foi a Hinomaru Bunko, já que foi lá que ocorreu a criação da revista Kage, uma antologia de histórias, muitas vezes diferentes do que os leitores japoneses da época estavam acostumados, já que os contos focavam majoritariamente em suspenses e tramas policiais. Grande parte da inspiração para o nascimento desse tipo de história vinha dos filmes e da literatura estrangeira, como o autor Mickey Spillane, que influenciou fortemente Takao Saito (autor da Hinomaru e amigo de Hiroshi) a criar o aclamado “Golgo 13”.
A Kage foi um passo muito importante na carreira pessoal de Tatsumi, já que um dos maiores sonhos dele era expandir os horizontes do mangá que, como eu disse anteriormente, era muito limitado à obras cômicas, voltadas para o público infanto-juvenil e sem muitos elementos visuais, priorizando uma leitura rápida e menos dramatizada.
Até que a ideia fosse para frente, houve muita resistência, inclusive por parte de Okimasa, que dizia que o que o irmão tentava fazer não era mangá, pois em seu entendimento “mangá” estava intrinsecamente atrelado às características que citei antes. Por conta disso, o termo “Gekigá” é cunhado. Ainda assim, a Kage não era considerada uma revista de gekigá, mas com certeza fez parte do processo de formação do mesmo, o que de fato aconteceu quando Hiroshi e mais alguns autores, incluindo Takao Saito, formaram o grupo “Gekigá Kobo” em outra editora e lançaram uma revista chamada “Matenrow”, que foi um marco na época.
Apesar de estar realizando uma vontade pessoal e profissional, é nessa parte que vemos Hiroshi sofrendo um desgaste físico e psicológico muito grande por conta do alto volume de trabalho e dos vários problemas que iam surgindo conforme a revista ganhava notoriedade.
Vida à Deriva é um dos mangás mais informativos que já li. Ele é extremamente esclarecedor em vários aspectos, e por causa disso nós conseguimos ter uma visão muito mais completa de como o mercado de mangás chegou onde está hoje. Claro que existem vários outros fatores além dos que são tratados na história, mas sem dúvidas, o mangá contribui de forma genial para isso.
Uma curiosidade é que além de termos direta ou indiretamente na história autores como Shotaro Ishinomori, Yoshiharu Tsuge, Osamu Tezuka, o já citado Takao Saito, entre outros, também vemos a casa onde muitos desses artistas viveram e trabalharam em conjunto: Uma pensão chamada “Tokiwa-so” em Tóquio. Apesar do prédio original ter sido demolido, hoje no mesmo local funciona um museu dedicado aos mangás e autores que ali trabalharam com uma réplica do prédio e do quarto em que os autores trabalhavam.
A arte é característica do autor, os personagens são estilizados mas possuem características distintas. Eu sou bastante eclético no quesito arte, então eu até gosto bastante do traço desses autores clássicos, às vezes, até prefiro. Apesar da grande quantidade de texto, a leitura flui de forma tão gostosa que quando percebemos, 200 páginas já foram lidas.
Todas as capas, artes e textos originais estão presentes no mangá da exata forma em que foram lançados originalmente, mantendo, inclusive, as letras em japonês. A tradução de absolutamente todas essas coisas estão após o fim do mangá, nos extras da publicação. Por falar nisso, a edição está extremamente caprichada, em formato 16 x 23 cm, capa dura, papel de alta gramatura, mais de 300 páginas por volumes, além de uma quantidade de textos extras e complementares que não me lembro de ter visto em nenhum outro mangá.
O preço sugerido de cada volume separadamente é de R$104,90, mas há também a possibilidade de adquirir um box lindíssimo contendo os dois volumes por R $199,00 (sempre há um descontinho). Caso queira ver em detalhes o box, a Mangás Brasil fez um vídeo mostrando, clique aqui para assistir.
Vida à Deriva é um dos melhores mangás lançados no Brasil nos últimos anos. É uma obra rica em todos os aspectos, e a edição nacional primorosa deixa tudo ainda melhor. Aqui o mangá realmente recebeu o tratamento que merecia.
Apesar disso, acho que a publicação não é recomendada para leitores casuais. É necessário um certo conhecimento prévio sobre a história dos mangás, ou, pelo menos, ter curiosidade acerca desse assunto. Pessoas que querem ler uma história rápida e descompromissada provavelmente não terão as expectativas atendidas. Não costumo dizer que obra x ou y é obrigatória, mas aqui terei que abrir uma exceção, pois aqueles que têm interesse no tema, com certeza irão adorar (e muito) o mangá. Eu coloco fácil entre as minhas melhores leituras dos últimos anos, não apenas de 2021. Eu não poderia dar outra nota para a publicação que não fosse nota 10. A vida profissional de Yoshihiro Tatsumi em quadrinhos é espetacular. Que venham mais mangás do autor para o Brasil.
Yoshihiro Tatsumi faleceu em 7 de março de 2015, com 79 anos.