MB Nacional: Teocrasilia
Após o golpe político ocorrido em 2016, um cenário quase distópico atingiu o Brasil. Com um forte crescimento de instituições religiosas entrando na política, chegamos ao ápice com o candidato que proclama seu slogan aos quatro ventos, enaltecendo o deus cristão acima de tudo, ignorando claramente toda e qualquer questão que envolve o estado laico. Ainda bem que estamos falando apenas de ficção, né?
Sinopse
Num breve e distópico futuro, o Brasil é governado pelo Divino Altar. Diante de um cenário repressor e violento, veremos como diferentes pessoas lidam de diferentes formas com a situação. Um grupo decide se isolar e começar uma sociedade alternativa; uma cientista libertina decide encarar o mundo sem mudar sua saia curta; um funcionário público burla as proibições do regime por trás de um pseudônimo. Qual será o destino deles numa Niterói vigiada pela Legião do Altar e os fanáticos Cruzados?
O que mais chama a atenção nessa história é como ela conversa com a nossa realidade atual. Claro, apesar de diversas diversas, as semelhanças com coisas que ocorrem no Brasil atual são gritantes, seja pela influência de instituições religiosas na política, chegando ao ponto de igrejas realizarem palanques a candidatos, ou o próprio slogan deste governo fictício de Teocrasília que é “Deus acima de tudo e todos”.
“Mas, por que coincidências se o quadrinho foi lançado recentemente?”, você pode perguntar.
E a resposta está no fato de que, embora o quadrinho tenha sido lançado pela editora Universo Guará em 2021, foi escrito em 2016, quando toda a polarização política e o processo de impeachment estava apenas começando. Os movimentos que podemos ver dentro do quadrinho, e que tanto vemos como farpas a sociedade atual, na verdade estavam em estágio embrionário na época em que o gibi foi escrito. E isso acaba sendo uma faca de dois gumes.
Se por um lado o trabalho de Denis Mello é quase profético em certos pontos, fazendo com que criemos diversos paralelos com a realidade, por outro, pode ser um tanto quanto frustrante para pessoas que querem usar o quadrinho como um escapismo e se veem em algo real demais. (Ressaltando que usei o termo “real demais” para o pano de fundo de uma história distópica).
Porém, a história não se prende apenas em questões mais pé no chão, fazendo isso de duas formas. A primeira é dando um passo a mais na realidade. Se na vida real, as questões religiosas opinam quanto a política, no quadrinho, elas mandam. O Brasil é totalmente comandado pelo chamado Divino Altar, um grupo político religioso.
A segunda é consequência direta da primeira, onde vemos e acompanhamos um grupo de rebeldes que estão de saco cheio de tantas imposições e censuras feitas pelo Divino Altar e decide criar o seu retiro ilegal, onde possam ter liberdades religiosas, criativas e de opinião. Um dos principais idealizadores do retiro é Yuri, um homem que já lutou em revoluções e arrancou sangue de pessoas, e hoje é assombrado por tais atos, tanto por si mesmo quanto por seus amigos.
A história consegue abordar diversos pontos de vista com seu grupo de personagens principais: aqueles que estão dispostos a lutar pelo que acreditam; aqueles que não gostam de sua realidade, mas é cômodo ficar daquela forma; e aqueles que algo impede que lutem, seja a família ou até mesmo o emprego. Tais abordagem trazem uma carga dramática real para o quadrinho, visto que tais visões são bem reais em nosso mundo.
A arte, apesar da falta de cores, é bem condizente com sua proposta e, para ajudar na contextualização da história, diversos “enxertos” de jornais, panfletos e outras coisas mais são colocados no gibi, todos com alfinetadas diretas a pessoas do cenário político brasileiro.
Apesar da boa história, o quadrinho acabou me perdendo em um detalhe importante: a caracterização dos vilões é algo que beira ao caricato, o que gera um contraste muito forte e negativo, pois enquanto os personagens principais são críveis, um dos vilões, que está em uma clara referência a um Campo de Concentração, é visualmente muito semelhante a Hitler. Isso quebra um pouco a suspensão de descrença. Apesar disso, o outro grupo de vilões, os chamados Cruzados, chamam mais a atenção e nos trazem de volta a essa realidade criada por Denis. Um grupo de extremistas fanáticos que querem “fazer justiça com as próprias mãos”.
Os dois primeiros volumes de Teocrasilia entregam uma construção de mundo interessante, que pode até incomodar com semelhanças ao mundo real atual, além de momentos vilanescos caricatos, mas ainda assim é uma ótima distopia com uma forte mensagem. Pena que talvez ela tenha chegado um tanto quanto atrasada.