MB Review: A Voz do Silêncio
Cada pessoa tem um limite individual até onde consegue ver algo sem chorar. Muitas pessoas choram vendo uma pessoa que gostam realizando um sonho. Outras, com uma carta de reconhecimento de algo que era muito importante. Eu sempre fui do lado mais seco desse limite. Até hoje, nenhuma obra de ficção, seja livro, mangá, quadrinho, filme, série ou o que for, me emocionou a ponto de me fazer chorar. Mas quatro chegaram bem perto:
O final do que hoje é o meu livro favorito da vida, “As Vantagens de Ser Invisível”; a cena despedida em “AnoHana”; a cena de um certo grito em Ennies Lobby, em “One Piece”… e uma das cenas do nosso assunto de hoje.
Preparem os lenços! Hoje, será feita a review de uma das obras que mais me tocaram nos últimos anos, de uma forma tão profunda que só de lembrar já sinto meus olhos marejando. De Yoshitoki Ōima, lhes dou as boas-vindas à A Voz do Silêncio.
Sinopse Oficial:
Shouya é um bully, suas brincadeiras infantis são uma verdadeira tortura para sua colega de classe, Shouko, uma nova aluna surda. Conforme a coisa piora e todos ao seu redor parecem ignorar ou estimular as brincadeiras maldosas, Shouya passa dos limites, forçando Shouko a mudar de escola. Tendo sido considerado culpado por tudo, agora é ele quem sofre torturas e bullying, aprendendo na pele o seu erro.
Agora, seis anos depois, o rapaz decide encarar de frente a menina que atormentou e tentar corrigir os erros do seu passado. Será que ele conseguirá sua redenção? Ganhador de diversos prêmios no mundo todo, A Voz do Silêncio, no original Koe no Katachi, chegou a ser adaptado para as telonas no final de 2016, tornando-se um dos grandes sucessos do ano.
Narrativa:
Desde o início, A Voz do Silêncio acaba trazendo pontos que fazem com que a obra de Yoshitoki Oima se destaque. Durante o primeiro volume inteiro, somos apresentados a um flashback mostrando a infância de Shouya, como conhece Shouko e como toda a questão do bullying acontece. E, sem passar pano para nenhuma das atitudes dele, a autora além de colocá-lo como peça central do mangá, também deixa muito claro os motivos e as intenções pelos quais o bullying acontece e cada uma das consequências, mostrando tudo isso em várias camadas.
No primeiro volume, Shouya é uma criança que não quer se sentir entediada. Impulsivo e inquieto, ele vive em busca de pulsões para continuar. Mas, confrontado pelo crescimento e pela vida adulta pela primeira vez, ele se vê no mais puro tédio e rejeita isso. Então, encontra em Shouko uma forma de descontar esses impulsos, através de zoeiras que escalonam a níveis completamente inaceitáveis.
Além disso, logo neste primeiro volume, somos apresentados a dois fatores muito importantes. O primeiro é o despreparo de instituições em geral com Pessoas com Deficiência (PcD), seja com a cena da professora animada querendo ensinar língua de sinais para os alunos, sendo que ela mesma não faz ideia de como se comunicar dessa forma, ou seja, com professores que começam buscando uma inclusão social da personagem mas logo que vêem que tal inclusão iria alterar a forma de ensino, começaram a cobrá-la e desestimulá-la a participar das aulas.
“Nossa, mas isso tudo é horrível. Não é só o bullying que machucou bastante ela pelo jeito, né?”
Exato! E esse é o segundo ponto apresentado. Shouya não era o único que praticava tais ações com Shouko, apesar de ser o que fazia as coisas mais intensas. Os outros participavam, riam, incentivaram. Desde alunos até professores. E quando a situação passou do ponto que era permitido, a culpa recaiu apenas em uma pessoa. Novamente ressaltando que tudo isso é contado sem “passar pano” de forma alguma para as atitudes deploráveis do protagonista.
Shouya poderia ter feito qualquer outra coisa que fizesse com que ele se sentisse parte de um grupo, afinal, é comum que nesta faixa etária, aconteça essa busca desenfreada por pertencimento social. E foi nisso, com um ambiente que não colabora nenhum pouco com PcD, que o garoto encontrou uma forma de driblar o que lhe afetava. Não tenho coragem de dizer que Shouya é uma vítima da situação assim como Shouko, mas a situação apresentada não é apenas de “esse personagem é mal com ela porque sim”, como é feito em vários outros animes.
Então, vamos aos demais volumes, onde as consequências dos atos reverberam mesmo anos depois. Tentarei não ser muito detalhista até para evitar spoilers. Shouya, agora maior, se tornou a vítima de tudo o que praticava, fazendo com que, além de se sentir péssimo por ser alvo de bullying, também se sentisse traído, afinal eram todas aquelas pessoas ao redor dele que aceitavam e incentivavam o que ele fez. Porque apenas ele deveria ser punido? Isso fez com que o garoto rejeitasse a existência das outras pessoas como seres humanos, o que a autora fez de uma forma lúdica maravilhosa colocando um X no rosto das pessoas em suas ilustrações. Inclusive, não é exagero dizer que a situação a qual ele passou a viver seja algum transtorno, como depressão ou até estresse pós-traumático. Não posso definir diagnósticos, mas há correlações de alguns pontos.
Então, tentando exorcizar seus demônios do passado, Shouya aprende a língua de sinais e busca Shouko para lhe pedir perdão pelo que fez e tentar recomeçar. Mas ambos sabem que as cicatrizes estão bem fortes para serem ignoradas completamente, seja no dia-a-dia ou apenas em recaídas. E aqui, conhecemos mais sobre a Shouko, uma personagem que servia mais como “um motivo para outras coisas acontecerem” do que como um personagem em si.
Conhecemos a irmã mais nova e a mãe dela, duas personagens que acabam trazendo mais contexto a trama, seja a mãe pedindo para que Shouko “pare de fazer mímicas” quando está na mesa ao jantar ou a irmã tirando fotos de animais mortos e as expondo em seu quarto. Vemos ali a convivência da personagem, tanto com pessoas que se importam com ela de coração quanto com pessoas que não sabem nem querem aprender a lidar com o fato dela ser PcD.
Não posso falar muito mais que isso para não entregar spoilers, mas o desenrolar da trama vai sendo feito de uma forma tão natural que passamos não só a simpatizar com Shouya como também a torcer para que ele também seja feliz, mesmo vendo tudo o que ele fez a ela. Vemos ele tentando entender como é o mundo de Shouko e entendendo a gravidade de toda a situação e verdadeiramente se arrependendo de tudo. Vemos também a vida de diversas outras pessoas ao redor de toda essa situação e os mais variados tipos de pensamentos sobre isso.
Edição Nacional:
A editora NewPop lançou este mangá em duas versões. A primeira delas, contendo 7 volumes e a segunda, sendo publicada atualmente, uma versão mais luxuosa, compilando toda a história em 4 volumes, dos quais três já foram lançados. Ambas as edições são belíssimas, com um acabamento gráfico de nota. Em minha leitura, não encontrei erros de revisão e/ou ortografia.
Mas, um ponto que acho necessário enfatizar e parabenizar a editora é o trabalho que ela fez nas redes sociais, puxando direto cenas do mangá para o Instagram e explicando o que cada um dos sinais usados na JSL, a Língua de Sinais Japonesa, significa. Foi um acerto chamar a atenção para este ponto e a divulgação e o empenho da editora para com isso foram extremamente bem aplicados.
Conclusão:
Quem fala que “não existe leitura obrigatória para ser feita”, não conhece A Voz do Silêncio. Brincadeiras à parte, é um drama cativante, com camadas de interpretação e que mostra a falha que a sociedade em um geral tem para com PcDs e toda a questão de inclusão social. Os personagens, bem humanos, conseguem mostrar de uma forma verossímil muitos acontecimentos de sua infância e adolescência. Além disso, a autora ainda pincela momentos mostrando que o ambiente é determinante para a formação de uma pessoa. Um drama que aconselho para qualquer pessoa ler.