MB Review: O Verão em que Hikaru Morreu #1

Foi uma surpresa para Mokumoku Ren que sua primeira serialização comercial tenha sido um grande sucesso, vendendo aproximadamente 200.000 cópias no Japão nos 3 primeiros meses de lançamento. Mas como muitos leitores devem concordar, seria uma perda para nós se o mundo não notasse o quão primoroso é “O Verão em que Hikaru Morreu”. Por isso, aqui vocês vão ler um grãozinho do universo próprio e assustador deste mangá.

Em um pequeno vilarejo inspirado nas áreas montanhosas da província Mie, dois jovens passam seus dias juntos enquanto nutrem um grande afeto um pelo outro. Mas o que antes era uma situação pacata, torna-se uma incógnita quando algo inumano se apropria da identidade de Hikaru, falecido poucos meses antes. A dinâmica de normalidade entre os dois – e entre a comunidade local – é brutalmente interrompida quando Yoshiki confronta as suas suspeitas sobre o novo “Hikaru”.

Enquanto passeamos por uma explosão visual onde provavelmente todos os elementos de cenas foram posicionados propositalmente, como é o caso das onomatopéias ressaltadas em cenas que exploram o resgate sonoro, impelindo tipos específicos de sentimentos e sensações. Também percebemos um esforço meticuloso no detalhamento das cenas e na coerência geral da construção narrativa.

Parte do encantamento pode ser reforçada pelo fato de Mokumoku Ren ter idealizado a história muito antes de seu lançamento, revisitando seus aspectos para anos depois publicá-la como um curta no Pixiv. Contudo, utilizou um título diferente e este foi assinado por outro de seus pseudônimos. Só posteriormente a obra virou o que conhecemos hoje como “Hikaru Ga Shinda Natsu”.

Diferente do que pode ser esperado quando lemos uma obra que apresenta um personagem forasteiro e inumano com um teor sombrio, muito do foco é desviado dos entes do verdadeiro Hikaru e o leitor é direcionado para perceber as nuances do impostor. Nos faz questionar se este seria capaz de ter emoções, se está perdido, se sofre, de onde veio, o que pretende… Ao mesmo tempo, o inumano não é tratado como uma criatura capaz de se tornar um personagem bondoso e altruísta ou que será caracterizado pela nossa própria perspectiva humana de ética e moralidade. Em paralelo, questionamos os acontecimentos inexplicáveis ou inabituais na província e analisamos os sinais e avisos que aparecem acerca da possível natureza do novo Hikaru e suas intenções.

Yoshiki, como a pessoa que descobre a existência de “algo” que vai além do humano, se prende ao desejo de continuar ao lado de Hikaru, independente de ser uma ilusão. Mas sua reflexão é singular quando percebemos que ele ainda lida com o luto e não fica inteiramente insensível pela presença de algo com as características físicas de Hikaru. Ele sequer tenta moldar a nova criatura para suprir uma idealização distante e procura aproveitar o que sobrou de Hikaru antes do restante das estranhezas desmoronarem sobre a cidade.

Yoshiki particularmente não demonstra o pavor que poderia ser esperado e sua resposta atípica não significa um atalho simplista em aceitar facilmente a troca. Ele é tomado pelas consequências emocionais da perda de quem ama e está imerso demais na sua própria tristeza para ponderar racionalmente o que houve ou o que pode resultar da presença de uma criatura desconhecida. Por isso, continua vivenciando todas as agonias e incertezas ao longo do desenvolvimento, em um estado de conflito emocional que pode ser confundido com a inércia.

A curiosidade parece ser um dos motivos para a leitura, mas, pelo histórico de Mokumoku Ren, possivelmente haverá um limite onde o olhar humano não conseguirá decifrar exatamente o que representa a entidade inumana no mangá. Uma característica corajosa a ser associada ao protagonista. Apesar de essa projeção parecer frustrante para quem lê esperando respostas claras, o que não é compreendido ainda pode ser relacionável.

E é nesse aspecto que defino um outro ponto forte na obra. Você não necessariamente precisa buscar pelo entendimento racional de tudo que é trabalhado, mas ainda ficará imerso nos detalhes quase imperceptíveis que marcam sua composição única e conseguirá se identificar com o que não pode ser explicado, possivelmente criando um vínculo com os personagens e incluindo o “novo” Hikaru, que, novamente, não foi elaborado para ser um exemplo de personagem que avançará emocionalmente para se tornar um ideal da humanidade.

Mesmo tratando-se de um volume inicial, Mokumoku Ren conseguiu introduzir e desenvolver uma estrutura de história bem conectada e com todo um potencial para instigar o leitor, colecionando vários aspectos positivos entre ambientação e construção dos personagens.

Embora o mangá seja também sua estreia comercial, sua vida foi marcada pelo prazer de explorar o tema do terror e inumano, além de desenhar desde a infância.

O Verão em que Hikaru Morreu foi uma aposta muito alta por se tratar de um mangá que era – e continua sendo – disponibilizado gratuitamente em plataformas digitais, mas essa característica também impulsionou sua viralização em diversas redes sociais. A solicitação para que o mangá pudesse ser distribuído legalmente de forma gratuita veio de Mokumoku Ren e esse foi um dos requisitos para a escolha da revista onde o projeto seria publicado.

Apesar de existirem variados tipos de terror, todos com seus méritos e apelo para diferentes públicos, a escolha de Mokumoku Ren é muito inspirada nos seus próprios medos. Enquanto fã cinematográfica, sentia pouco pavor de cenas de susto ou criaturas e monstros já conhecidos e facilmente desvendados, constatando que o que lhe apavora especificamente é perceber um cenário onde alguma entidade parece estar integrada na sociedade. Mas quando você começa a prestar mais atenção, logo percebe que tem algo fora da ordem, mas não consegue identificar exatamente o que é. Enquanto esse “algo” desalinhado continua fazendo parte do cotidiano e outros vivem suas vidas não percebendo a mudança.

Ao lermos os cenários que exploram o teor psicológico, podemos narrar uma trajetória imaginativa onde a frequente aproximação do desconhecido aumenta a percepção de que algo está totalmente desbalanceado da normalidade. Por isso, a tensão é construída, reconstruída e intensificada cada vez que a distância diminui ou é projetada imprevisivelmente, causando um efeito paralisante de angústia. Uma adrenalina de pensamentos sobre diferentes caminhos e ações possíveis para a autopreservação. 

Esse histórico é indiscutivelmente refletivo no mangá com sua ambientação complexa que utiliza representações sonoras ou com diferentes profundidades visuais para causarem tensão e desconforto no leitor. O posicionamento dos traços, os tons das sombras e os formatos característicos nas cenas ajudam a criar esse clima. Fica clara a inspiração de Mokumoku Ren em filmes por todo o estímulo de determinadas sensações no decorrer do volume, mas podemos adicionar também sua bagagem profissional de conhecimentos, criatividade e afeto na construção de uma história, uma vez que Mokumoku Ren chegou a pessoalmente verificar papéis em diferentes livrarias para escolher uma textura que mais combinasse com o teor da sua criação. Esse olhar detalhista é responsável por uma introdução tão impactante em uma obra de entrada no mercado.

Na obra, a persistência da dúvida é também um artifício muito bem aproveitado. A dúvida não é criada pela desordem ou falta de conexão, ela é estimulada propositalmente e provavelmente revisada inúmeras vezes para uma entrega esplendorosa de tensão, intimidade, terror, emoção, desbravamento psicológico, vulnerabilidade e muitos questionamentos.

Ao falarmos da relação entre os protagonistas, temos alguns lados opostos na interpretação de diferentes leitores que querem entender a relevância clara sobre os elementos queer. A sutileza de como isso é abordado não descarta que faz parte da obra, sendo uma nuance particularmente importante para explicar alguns dos comportamentos de Yoshiki, que aceita a presença de algo inumano independente das consequências.

Isso contribui para a sensação agridoce da leitura, já que não se trata de um romance, tampouco construirá uma possibilidade de uma relação genuína. A obra lida com vínculos emocionais intensos que coordenam parte dos desdobramentos que poderemos esperar nos volumes seguintes.

O Verão em que Hikaru Morreu provavelmente não entregará todas as respostas para as dúvidas dos leitores. Um dos aspectos estimulantes da obra é perceber que o terror existe no que não será desvendado.

2 thoughts on “MB Review: O Verão em que Hikaru Morreu #1

  • 9 de janeiro de 2024 em 04:46
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    Parabéns por esse texto maravilhoso, que já me deixou mega curiosa e cheia de vontade de lê essa obra fantástica. Amo esse tipo de história cheia de suspense e que atiça o nosso imaginário. Vou correndo providenciar a minha edição.

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