MB Nacional: Mayara e Annabelle
Sempre que estamos em alguma discussão sobre quadrinhos de heróis, alguém levanta a pergunta “E um super herói brasileiro, como seria?”. Geralmente, vemos a mesma imagem brega de um Capitão América (só que verde e amarelo), muitas vezes usando um uniforme tático militar, e com aquele velho discurso de “o país é bom, o que f*** são as pessoas” é a imagem que desponta no imaginário de alguns.
Com o tempo, essa discussão foi se expandindo e a visão do super herói brasileiro foi mudando um pouco – principalmente depois que as cores verde e amarelo ganharam uma conotação negativa para um determinado grupo. Mas essa discussão sobre heróis brasileiros já deveria ter acabado em 2014, pois já ganhamos o super herói que mais representa o Brasil. Ou melhor, as super heroínas.
Conheçam Mayara e Annabelle.
Criada por Paulo Casado e Talles Rodrigues de forma independente em 2014, a história das duas personagens foi recebendo novos volumes anualmente, até ser encerrada com seu volume 5, em 2018. Em 2019, um especial chamado Mayara e Annabelle – Hora Extra entrou no Catarse – e inclusive está concorrendo ao prêmio HQMix deste ano como Melhor Publicação Independente em Edição Única. Agora, em 2021, a Conrad Editora trouxe a história para o seu catálogo, primeiro em formato digital e depois compilando tudo em duas edições lindas de bonitas, as denominadas Edições Definitivas. E é justamente sobre essa que vamos falar hoje.
Mas, sobre o que fala Mayara e Annabelle?
Vamos lá, acompanhe o raciocínio comigo: Você é uma funcionária pública que, depois de fazer uma denuncia sem provas, acabou sendo transferida para um outro setor, para evitar problemas. Uma situação bem brasileira, não? Agora pense que a transferência foi para um outro Estado e você tem problemas para se acostumar com esse novo ritmo. Ainda estamos falando de situações bem cotidianas de nossa vida, certo? Agora, adicione o fato de que você, enquanto funcionária pública, faz parte da Secretaria de Combate a Demônios sendo uma ninja porradeira. Uma sexta feira comum, né? Não? Acho que errei em alguma coisa aqui então…
Bom, é justamente isso o que acontece neste maravilhoso gibi. Mayara é uma ninja paulista nipo-brasileira que trabalha na SECAFC, a Secretaria de Controle de Atividades Fora do Comum, uma agência governamental voltada à luta contra monstros e demônios. Porém, depois de encontrar alguns podres, a ninja acaba tendo sua cabeça marcada e, por isso, é transferida, para que assim não chamasse tanta atenção.
Mayara então é transferida para a agência do Ceará, em Fortaleza, e ali conhece a única funcionária do local, Annabelle. O choque cultural e de personalidades é intenso, mas é necessário ser posto de lado para manter o trabalho em dia. Mas, que trabalho? Fortaleza não tem monstros há mais de 20 anos. Contudo, com a chegada de Mayara, isso está prestes a mudar…
A história de Pablo Casado e Talles Rodrigues consegue criar um ambiente tranquilo e tipicamente brasileiro, enquanto nos apresenta também um universo fantástico com o qual trabalha e é essa mescla que cria uma identidade tão única que só lendo para entender mesmo.
Além de ter visto algumas cenas que são bem próximas à realidade de São Paulo, eu, enquanto paulista e paulistano, me enxerguei demais em cenas protagonizadas pela Mayara, seja pela constante necessidade de ocupação, pelo desespero em conexão com a tecnologia ou até mesmo pela competição acidental que fazemos com o que é nosso.
Não sei dizer se esses traços são característicos desta região ou são algo mais generalizado, mas é fato que eu me identifiquei mais com esta personagem e pressuponho que o mesmo aconteceu com a Annabelle para cearenses ou pessoas que nasceram próximas a região. E esta pressuposição não é simplesmente do nada, mas pelo cuidado que os autores tiveram na representação de tudo, usando até mesmo gírias e termos cearenses, e também pelo fato de que ambos os autores são do nordeste (sendo Pablo alagoano e Talles cearense). Assim sendo, além de representar um pouco mais povos fora do eixo Rio-São Paulo, ambos têm capacidade e vivência para tal.
E como já dei atenção demais para Mayara, vamos então para sua contraparte, Annabelle. Uma maga mais despojada que gosta de curtir a vida, uma praia e não liga tanto para a burocracia chata que é seu trabalho. Não pense que estou de forma alguma desmerecendo este estilo de vida, pelo contrário, não só amei esta personalidade como a invejo. É justamente o conflito entre duas personalidades tão opostas, de uma forma relativamente natural, que faz com que a história tenha um premissa interessante e atraente. Pode até dizer que é um clichê usado de uma forma correta.
Aprofundando a História
Com o passar da história, vamos descobrindo mais camadas dentro de tudo isso, sobre o que Mayara descobriu e denunciou e também sobre o motivo por que os monstros não atacarem a cidade há muitos anos e foi aqui onde a chave virou e a história se transformou para mim, passando de algo divertidinho de se acompanhar para algo que eu preciso ver a próxima parte para ontem. A trama ganha um ar mais político-social e aborda bastante uma questão que chama a atenção de diversas pessoas até hoje na região nordeste: O Coronelismo.
Explicando de maneira simples, o coronelismo é uma questão que se iniciou por volta da própria proclamação de República, em 1889, mas cujos traços foram herdados das Capitanias Hereditárias. A prática, em resumo, se trata de um político, ou uma família, exercendo sua influência sob determinada região, seja financeiramente ou com ameaças à vida, para comandar tal sociedade. Esta prática inclui também questões envolvendo fraude eleitoral e um certo favoritismo para que esse poder fique apenas em mãos da própria família ou de pessoas confiáveis – conceito conhecido por nepotismo.
Apesar de assemelhar-se a algo que já ocorre há muito tempo e que hoje, quando é feito, é de forma mais discreta (como em qualquer família rica que tenha posse dos meios de produção), o coronelismo ainda é um medo em diversas cidades de regiões menos urbanas do nordeste. E, sabendo disso, a dupla de autores utiliza dessa historicidade a seu favor, não apenas para criar o que pode ser visto como uma crítica, como também para dar profundidade a sua trama.
Mas não pense que é só a parte histórica e social nesse quadrinho que vale a pena, porque se você gosta de um bom shonen de lutinha, vai ser muito bem servido aqui. A ação é envolvente e o Thalles sabe como desenhar valorizando tanto as cenas de luta mais corpo-a-corpo de Mayara quanto questões mais lúdicas e mágicas que envolvem os combates de Annabelle. Aliás, aproveitando que estamos falando aqui de arte, comento que o esquema da divisão dos capítulos feita neste quadrinho é muito interessante. Mayara e Annabelle conta com uma colorização diferente do padrão, lembrando o estilo que ficou conhecido por quadrinhos como Sin City.
A arte de Talles Rodrigues
O quadrinho segue um esquema de tons de cinza usando somente uma cor diferente para dar destaque em alguns elementos da cena. Porém, em algumas cenas, isso é extrapolado, criando uma página que se utiliza de luz e sombra basicamente apenas com a cor de destaque, lembrando bastante a colorização das páginas de Cavaleiros do Zodíaco. Mas, se isso ainda não é o bastante para criar uma identidade visual muito interessante, a cor em destaque altera conforme os capítulos vão passando. Enquanto no volume 1, a história é em preto e branco e pontos específicos em laranja, o segundo volume mantém um tom de amarelo e o terceiro, rosa.
E a Conrad? Fez jus a essa obra?
Falando agora da parte física, a edição da Conrad dispensa qualquer tipo de apresentação, visto o tamanho de sua beleza. Compilando os três primeiros volumes da história, esse volume vem no tamanho de 17 x 15, com uma capa cartonada, sobrecapa, 240 páginas ao preço de 59,90. A capa deste encadernado é uma arte nova, exclusiva para esta versão e a capa interna, ao tirar a sobrecapa, estampa uma Annabelle envernizada, dando um toque lindo ao quadrinho. Mayara estampa, no mesmo estilo, a quarta capa desse quadrinho. Além disso, a edição contém extras de imagens disponibilizadas nos capítulos digitais e textos de ambos os autores mostrando diversas ideias criativas, além das mais belas referências que foram usadas para criar a história.
Apesar de ainda não ter a data oficial do lançamento do segundo e último volume dessa série, Mayara e Annabelle – Edição Definitiva vale a pena ser adquirida de imediato! Pablo Casado e Talles Rodrigues fizeram um trabalho primoroso e responderam a uma das perguntas que mais se via em grupos de quadrinhos. Venham, amantes de gibi de herói, e conheçam como seriam as super heroínas brasileiras.