MB Nacional: O Vazio que nos Completa, de Sergio Chaves e Allan Ledo
Muitas pessoas já chegaram a ver aquele meme que dizia que um dia você iria acordar com seis anos, de volta à idade infantil, e tudo o que você viveu até agora seria um sonho. Apesar de muito improvável, este meme já chegou a me despertar uma certa agonia, na qual eu ficava pensando o quanto do que eu vivo realmente era real. Não é de hoje que perguntas como “o quão real é a nossa realidade?” acontecessem. E é justamente este o tema do quadrinho que vamos falar hoje.
O Vazio que nos Completa é um quadrinho lançado por Sergio Chaves e Allan Ledo, pela editora Marsupial, no selo Jupati. Em 112 páginas, a história nos evoca sensações interessantes sobre o questionamento da realidade e faz isso de uma forma única.
Acompanhamos Douglas, um jovem que constantemente é atormentado por alucinações, devido ao seu diagnóstico de esquizofrenia. Sua vida muda ao conhecer Letícia, porém, os comentários de seu melhor amigo fazem com que Douglas questione o que é real e o que não é.
Antes de começar a análise em si, vale a pena fazer um breve comentário. Como não tenho o devido gabarito para comentar a história do ponto de vista da doença e sei que existem diversas formas erradas nas quais a esquizofrenia é retratada na cultura pop, estarei fazendo a análise considerando que o personagem sofre alucinações, sem considerar o diagnóstico. Portanto, caso comente que “X coisa está [ou não] bem feita com a proposta” me refiro ao fato do personagem estar alucinando e não a ter esquizofrenia.
Dito isto, vamos ao quadrinho. O quadrinho conta com 7 capítulos e logo nos dois primeiros o autor nos mostra a narrativa, dentro da qual estranhamos diversos elementos e questionamos a realidade, afinal, em menos de 20 páginas ela já se desmente e mostra uma nova faceta na qual, até o fim, não conseguimos saber ou distinguir qual das linhas era verdadeira – isso se, de fato, alguma era.
O quadrinho brinca com a ideia de perspectivas até em pequenos detalhes como no indicador do capítulo. Colocando o capítulo atual no meio da página, a ordem dos números muda sempre que um novo capítulo se inicia mexendo também com essa ideia de pontos de vista. Ficou confuso? Exemplifico: No capítulo 1 o índice está marcando 5671234, com o 1 no centro. Quando passamos para o capítulo 2, o índice mostra 6712345, agora com o 2 no meio, mas toda a ordem dos números alterada.
Douglas, o protagonista da história, assim como muitos de nós, demonstra ter aflições, conflitos e sensações que não consegue demonstrar da melhor maneira. E, com o passar da história, vemos muitas vezes o conceito de arte enquanto desabafo, seja na pintura, na escrita ou em algum outro ponto, o autor demonstra a arte manifestada por pessoas como uma forma de escapismo de suas angústias.
E, por isso, Douglas escreve.
Escreve para ver se consegue controlar o que pensa e, já que não pode distinguir o que é real e o que não é, que pelo menos crie o seu irreal. Um mundo no qual é possível sentir que tem o controle e não é apenas levado por sua própria existência.
A verdade é que não tem como falar desta história sem estragá-la. Lê-la é uma experiência única, que pode ser bem complicada, principalmente por conta da dúvida sobre o que está acontecendo e o que é alucinação do personagem, e que, ao final, pede uma releitura. É até triste pensar que uma história que pode trazer tantas reflexões, tanto sobre a realidade quanto sobre o papel da arte, não pode ser analisada a fundo devido a individualidade da experiência que ela causa.
Então, partindo para partes que podem ser melhor explanadas, vamos falar sobre a arte. Utilizando apenas preto e branco, a arte de Allan Ledo é bela. Não é espetacular, mas cumpre o que se propõe. E um toque que eu preciso destacar é a forma narrativa que ele (ou o autor) encontrou para mostrar que algum personagem não está prestando atenção no que o outro está falando, sobrepondo o balão com o outro e impedindo até mesmo a nós, leitores, de lermos o que foi dito.
Infelizmente, apesar das boas reflexões que a história causa, nem tudo são flores. A história, apesar de boa, não tem nenhum ponto excepcional que aborda a questão de o que é real de forma diferente do que outras obras fizeram antes e o conteúdo dela, mesmo bom, dá a impressão que faltou alguma coisa para ser algo realmente marcante, ainda mais nos capítulos finais. Mesmo com este revés, recomendo fortemente a leitura.
A edição tem 112 páginas, no tamanho 26.2 x 19cm, ao preço de R$56,00 e pode ser comprada tanto na Amazon quanto na loja da própria editora. Apesar de não renovar ou trazer novas discussões para o tema, O Vazio que nos Completa acaba sendo uma leitura interessante seja pela forma com que é conduzida ou pelas reflexões que são feitas no caminho.
Sobre os autores
Sérgio Chaves é o editor e idealizador do Café Espacial, um selo para quadrinhos independentes. Uma de suas revistas foi indicada ao prêmio Angoulême em 2018. Esta é sua primeira narrativa longa e sua aposta nos quadrinhos.
Allan Ledo é um quadrinista que iniciou sua carreira com fanzines. Publicou em algumas revistas do selo Café Espacial.