MB Review: Memórias de um Freixo, de Kun-Woong Park

Novo manhwa da Editora Conrad, Memórias de um Freixo é de autoria do coreano Kun-Woong Park e inspirado no livro de Yong-Tak Choi. Narrada por um freixo (sim, a árvore), a história revisita os acontecimentos do trágico Massacre das Ligas Bodo, datado de 1948, período latente da Guerra da Coreia. 

Calmo e inocente, o freixo narra as atrocidades humanas com neutralidade e admiração, o que gera estranheza. A árvore vê beleza no repugnante e define os acontecimentos das noites que acontecem os massacres como um espetáculo. É incômodo de se ler e é esse incômodo que deixa o quadrinho tão denso, é assombroso a forma com que a árvore narra os fatos. Na intenção de criar uma narrativa fria e imparcial, o autor escolhe a árvore como protagonista justamente para representar essa visão externa e crua dos fatos. 

O foco é na natureza. Embora descreva com precisão os acontecimentos do massacre, é o ciclo da vida que se torna o ponto principal. Ciclo este que, mesmo engatilhado por eventos hediondos, acontece. A vida que finda alimenta a vida que nasce e cresce. 

Outro ponto a se considerar na narrativa são os fatos desconhecidos do freixo que, embora o quadrinho não diga especificamente o que está ocorrendo, é possível compreender o restante da narrativa pelas observações dos externos. Compreende-se o cenário de guerra, a luta política, o contexto do massacre, tudo isso graças à observação precisa e os detalhes na arte do autor. 

As peculiaridades na arte também são algo a se considerar. A constante comparação dos humanos com os animais, gado, porcos, peixes, dados de características humanas nas representações da HQ, chocam e evidenciam todo o horror do fato. Nos extras, o autor explica os motivos dessa representação e faz um paralelo com um outro fato, contemporâneo, mas que o despertou a reflexão sobre como as pessoas daquele momento foram tratadas como animais descartados. 

“Talvez as pessoas tenham sido enterradas mais fundo do que os porcos e o gado e, sem saber, porque tiveram que morrer, viraram adubo de árvores sem nome” (Kun-Woong Park, p. 296)

E isso só conecta as duas interpretações dessa história e sintetiza a ideia do autor em representar de forma neutra, com a utilização da figura de uma árvore, inanimada e estática, impotente, e a representação dos massacrados como animais, onde tudo se reconecta para a natureza e o ciclo da vida trágico. 

Outra peculiaridade é a ausência de face nos “uniformizados”, militares coreanos retratados no manhwa. Enquanto todos os massacrados possuem rostos e expressões, carregadas de sofrimento e dor nítida, os membros do governo não possuem rosto, são anônimos na narrativa. Representam o Estado e a violência legítima dele, são pessoas cumprindo ordens. Essa representação foi muito bem acertada, ao meu ver, pois carrega o peso de tudo o que aqueles homens representam: repressão, violência, truculência, autoritarismo.

E isso nos leva a outro ponto crucial da narrativa, a motivação política: As últimas palavras dos massacrados foram em apoio ao Presidente da Coreia, Syngman Rhee, e por vezes também em exaltação à República da Coreia. Mesmo à beira da morte, clamaram por aquele que era o responsável por sua execução. Isso pode ser interpretado como um apelo, um último grito indo contra seus ideais para sobreviver, ou um relato da verdadeira face política dos massacrados. Não eram comunistas ou da oposição ao governo, mas foram amarrados e tratados como tal. Afinal, foi registrado que muitos mortos não estavam envolvidos nos movimentos políticos, mas que foram associados a eles injustamente, como o caso do personagem do primeiro capítulo que acaba se tornando o ponto chave do fim da narrativa.

Presidente Syngman Rhee

Isso nos faz pensar que conceitos de república e democracia, que atualmente para nós parecem banais e corriqueiros, custam vidas até hoje. A luta pela liberdade política e pelo que esses ideais representam à nação é frequente em muitos locais e para muitas sociedades. Histórias como Memórias de um Freixo nos fazem refletir sobre o que significa a paz e como isso é precioso. Privilégio que muitas pessoas, hoje, não têm. 

Viver numa realidade longe da guerra e dos conflitos bélicos nos fazem crer, ou até mesmo ignorar, que existem ainda hoje locais em guerra e vidas sendo ceifadas e interrompidas.

Estamos “acostumadas com um cotidiano pacífico” (Chang-nam Kim, p. 298) e por isso histórias como esta são tão necessárias. Precisamos lembrar. Lembrar do passado para que os mesmos erros não sejam cometidos. É esse um dos papéis fundamentais da História e temos que lutar para não se deixar esquecer. 

Durante anos, o Massacre das Ligas Bodo foi tido como tabu e suprimido pelo governo coreano. Recentemente, em 2009 apenas, o governo assumiu os fatos e, com isso, a verdade foi tomando forma e vindo à tona. Os corpos foram desenterrados e o número de mortos foi oficializado. Vidas interrompidas, não apenas dos que foram massacrados nas noites relatadas pelo freixo, mas de todos aqueles que ficaram vivos e perderam alguém, todos que não esqueceram. E essa é a marca da individualidade e da coletividade das mortes nos massacres civis. 

No final da narrativa, o freixo conta como o vale se encheu de pessoas em busca dos que foram mortos. Famílias privadas de uma despedida tiveram que caminhar sobre os corpos para resgatar seus entes queridos, putrefatos e desfigurados. Famílias marcadas por décadas por ideais políticos que nem sequer os representavam. Pessoas silenciadas em não poder lembrar. 

O que foi o Massacre das Ligas Bobo?

Nas décadas de ‘40 e ‘50, a Coreia do Sul foi elevada à República Democrática. Com isso, membros da oposição foram concentrados no que chamaram de Ligas, campos de reeducação ideológica mantidos pelo regime. O Governo decreta a execução à oposição, por suspeita de apoio ao comunismo. A execução fica por conta dos militares da Coreia do Sul e de grupos anticomunistas de extrema direita. O massacre foi atribuído aos próprios comunistas por décadas, uma vez que foi silenciado e ignorado pelo governo coreano até recentemente. Como alguns membros da Liga apoiaram o comunismo no passado, ordenou-se a execução. Porém, muitos civis sem ligações políticas com a oposição foram cadastrados nas Ligas, o que resultou numa chacina de mais de duzentos mil mortos. Uma execução feita sem qualquer julgamento e que seguiu impune durante muitos anos. 

A edição física

A qualidade primorosa da Conrad é conhecida, e a edição física de Memórias de um Freixo se enquadra perfeitamente nessas características. Com sobrecapa, uma capa minimalista e com detalhes envernizados e miolo em offset muito bem encadernado, a HQ é luxuosa. A edição que nos foi cedida pela editora acompanha um marcador de páginas. 

Juntamente com a edição física, a editora nos enviou um pequeno pacote de sementes de girassol, que simboliza uma importante mensagem: o ciclo da vida. A Conrad nos convida a plantar os girassóis e acompanhar o nascer de uma vida, pois “em meio a dor, a perda e a morte, existe vida nascendo e renascendo no vale”.

Agradecemos à editora Conrad por compartilhar conosco essa belíssima história e por ter cedido o exemplar para nossa análise. Muito obrigada <3  

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