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MB Nacional: Crisálida, de Vinicius Velo

A convivência com a família sempre foi uma questão difícil. Seja por questões mais “simples”, como alguma discordância sobre brigadeiro ser melhor do que abacate, ou por questões mais… complicadas, para se dizer o mínimo. 

Infelizmente isso tem se aprofundado, principalmente de alguns anos para cá, em que pensamentos retrógrados vem tomando conta, não apenas do Brasil, mas do mundo como um todo. Racismo, homofobia e outros crimes têm sido tratados apenas como opiniões quando, como dito, são crimes. E a convivência familiar com pessoas que acabam se mostrando assim se torna cada vez pior. Então, entra a pergunta que qualquer pessoa esperançosa faria: Isso tem solução? Tem como mostrar para pessoas retrógradas o quão prejudicial são tais ações e tais comportamentos, disfarçados pifiamente de opiniões? Em uma dessas visões mais esperançosas, temos Crisálida.

Sinopse

Crisálida conta o processo de reaproximação de uma família separada por um conflito ideológico e de visões de mundo diferentes, bem parecido com o que acontece em muitas famílias no Brasil e no Mundo. A história acompanha Cássio, um homem idoso, viúvo, branco e conservador, que tem as convicções e visão de mundo colocadas à prova quando passa a cuidar de sua neta Ana, uma criança curiosa, alegre, comunicativa e preta, para que seu filho Pedro, com quem não conversa há quase dez anos, possa se tratar de um câncer agressivo.

Trama

A história começa mostrando o dia a dia de Bruno com sua filha Ana. Somos apresentados a ambos os personagens e, depois de um tempo para nos afeiçoamos, a grande problemática descrita na sinopse já se mostra presente. Bruno então, agora sabendo de sua situação de saúde, decide relutantemente ligar para seu pai, Cássio, para pedir que ele cuide de Ana.

Se não convivêssemos constantemente com diversas pessoas idênticas, poderíamos dizer que Cássio, a primeiro momento, é uma caricatura. Um senhor de idade, branco, vivendo em um condomínio, pregador da moral e dos bons costumes, se considerando um cidadão de bem, mas olhando torto para um casal gay que mora próximo a ele.

E então, alguns de seus conceitos são colocados à prova da forma mais simples e direta possível. Seu filho, o qual não conversa há anos, o liga. Em uma rápida discussão pessoalmente, revela estar com câncer e apresenta sua filha, Ana. E foi justamente nesse ponto que a obra de Vinicius Velo me pegou de jeito. De uma forma extremamente sutil, mostra os pensamentos de Cássio. Sem nunca falar abertamente, a cena mostra o que o senhor considera “normal” e o que foge disso.

Então, se inicia uma jornada onde aquele senhor tenta aprender como lidar com a neta recém-chegada. Sua experiência com crianças já é quase nula, e, no dia-a-dia, ele vai percebendo as diferenças de tratamento que as pessoas que ele convive tem para com Ana. E com esta mudança gradual, vamos acompanhando-o enquanto põe sua própria visão em xeque ao conhecer de perto as dores causadas por julgamentos como os dele em outrora.

Em muitas partes, o quadrinho tem uma condução e uma trama semelhante a O Marido do meu Irmão, que, particularmente, acho um dos melhores mangás que já saíram em terras brasileiras. Uma pessoa com preconceitos que enxerga os problemas da forma com que pensa ao conviver com alguém de uma minoria social. 

E acredito que esse é um dos maiores méritos desse quadrinho. Assim como Yaichi, Cássio não é abertamente racista ou homofóbico, mas demonstra diversos comportamentos preconceituosos, e claro, com a nossa pitadinha brasileira, fala dos problemas das Fake News para prejudicar um certo alguém, da mídia comprada e de como a caça ao comunismo deve acontecer. Nada que infelizmente não estejamos acostumados.

E mesmo com essa montanha de problemas, quanto mais entende o que Ana passa, mais empático se torna com ela e mais percebe o quão prejudicial (e, por vezes, até criminosa) é sua visão. 

Algumas vezes, Cássio e Ana vão visitar Bruno no hospital em meio a quimioterapia e ao tratamento. Nessas ocasiões, podemos ver a relação frágil entre pai e filho, que, apesar de não ficar claro o porquê do afastamento, conseguimos deduzir. E justamente em uma dessas visitas, mora o que pra mim é o momento mais belo do quadrinho todo, então peço um breve momento para comentar um leve spoiler, que não vai atrapalhar a leitura. Se preferir não levá-lo, pule o próximo parágrafo.

Bruno comenta sobre Olívia, a mãe de Ana. Sobre como se conheceram e sobre sua história. E mais importante do que isso, sobre como Olivia odiava falar sobre sua história pois trazia a tona uma falsa sensação de meritocracia, além de desmerecer todo o esforço das pessoas com menos sorte tiveram. E então, Bruno finaliza dizendo que não adianta mudar apenas para a Ana, mas que é necessário mudar por todos e que, para mudar, é necessário entender a causa de todo o problema para ter um combate mais efetivo.

No Mundo Real

Antes de partir para a análise da arte, vale a pena ressaltar que, apesar da linda história, ao meu ver, é uma visão um tanto quanto otimista e esperançosa e não sei se é por vivermos o momento que vivemos, mas particularmente, enxergo situações assim muito mais como exceção do que como a regra. 

Uma pessoa deixar de lado seus preconceitos, em um momento em que tantas questões a seu redor os enfatizam, sendo metade de forma assumida e a outra metade disfarçada de “liberdade de opinião” me parece utópico e raro. O quadrinho tem uma mensagem linda sobre o amor e como a empatia pode transformar, e, embora eu acredite nisso, não acredito que qualquer pessoa que tenha atitudes preconceituosas esteja aberta a uma situação assim.

Além disso, há também o delicado ponto sobre como tais situações aconteceriam. Se por um lado a maior conexão que pode acontecer seria dentro da família, por outro temos diversas famílias que rejeitam parentes devido a algumas questões que os envolvem, principalmente se tratando de sexualidade, o que também entra em outra minoria social. 

Então, se caso não for família, a conexão seria alguma pessoa mais envolvida politicamente? Também não podemos esperar isso, principalmente porque nenhuma pessoa pertencente a alguma minoria deve ser tratada como uma wikipédia sobre o assunto. E, mesmo caso a pessoa se disponha a ajudar, não são raros os casos em que a pessoa que “busca aprender” continua teimando em seu ponto sem enxergar o preconceito em suas ações.

Assim, embora tenha amado o quadrinho e a mensagem que ele busca passar, vale a pena ressaltar que não temos podido ser tão esperançosos assim na vida real. Dentro de seu otimismo, o quadrinho, inclusive, brinca com um paralelo de transformação de Cássio com a transformação de uma lagarta em borboleta passando pela crisálida, que é o que dá nome a história. 

Arte

A arte é fenomenal. Usando tons de azul ao invés do cinza, Vinícius dá um toque único a seu quadrinho. Todos os seus personagens são vívidos, muito bem expressivos e extremamente parecidos com pessoas que você pode encontrar na rua, e acredito que este é outro ponto de quadrinhos brasileiros. A identificação. Comentar mais acaba sendo chover no molhado, então acredito que não tenha muito mais o que dizer além de “É lindo”. 

Edição Nacional

A editora Universo Guará lançou este quadrinho este ano, sendo apenas em tons de azul, ao invés do preto, em uma edição de 23 x 17 cm, com 240 páginas e orelhas, ao preço de R$45,90. Ao comprar, além da belíssima edição, se é adquirido também um marca página. Agradecemos à editora por nos disponibilizar o volume para nossa análise!

Conclusão

Crisálida trabalha com uma visão otimista sobre a realidade de muitas pessoas e põe em xeque as visões preconceituosas de um senhor de idade ao gerar nele uma empatia, para que perceba que não é por pertencer a algum tipo de minoria social que alguém deixa de ser gente. Uma leitura mais do que importante e necessária, tal qual a já citada obra O Marido do Meu Irmão.

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