MB Nacional: Escuta, Formosa Márcia

Uma história está envolta em conceitos que muitas vezes parecem nos distanciar da realidade, ainda que essa visão pareça se perpetuar nas diversas narrativas. Seus heróis e as suas grandiosas mensagens, às vezes parecem nos distanciar da realidade e o poder das histórias de cada um. Escuta, Formosa Márcia é uma dessas histórias que poderíamos encontrar nas mais diversas formas de se contar uma história, mas também podemos identificar nas pessoas que vivem ao nosso redor. 

Márcia é uma mãe solteira, mulher, negra e vive em uma perigosa comunidade. E, embora seja uma realidade totalmente distante da minha, compõe uma grande parcela dos brasileiros que vivem em realidades violentas. Todos os dias, os noticiários são carregados por mortes de homens e mulheres nas mais diversas comunidades, bairros e cidades que são assolados por problemas urbanos, principalmente relacionados a violência. Longe de mim fazer juízo de valores sobre esse tema, e esse não é nem o intuito da Hq. Em meio ao turbilhão de problemas que envolvem a vida daqueles que vivem nesses ambientes, o que realmente importa aqui é a figura da Márcia, que para além de todas características que citei, é uma pessoa com medos e que vive um dia após o outro.

Buscando individualizar a figura da Márcia e sua relação com essa realidade, temos a impressão que já vimos essa representação em outras diversas narrativas, seja no quesito mãe ou mulher, mas o diferencial está nas camadas que a representam. Ela não parece ser apenas um personagem, seus dias comuns já eram difíceis desde o ínicio. Essa constatação não é feita com flashbacks, mas suas reações a cada situação. Seu drama escalona com a entrada da sua filha no mundo do crime, e nesse momento somos arrebatados pelos medos que a cercam, a solidão, a pressão que sofre, sua intensa angústia parece compor as páginas. E o pior de tudo, esses sentimentos não são novos, apenas surgem quando começamos a ser confrontados com seus momentos sozinha.

Nesse sentido, é válido apontar a arte e colorização, os tons pastéis e o intenso uso de várias cores torna a experiência de leitura incrível. Os personagens parecem sempre em destaque. Os próprios sentimentos que a Márcia representa parecem ganhar um peso maior, sumindo com os planos de fundo e centralizando a personagem. O desenrolar da história gera uma sensação de familiaridade e incertezas. A arte de Quintanilha torna ambíguas e comuns as paisagens, as pessoas são o centro de tudo. E em meio às incertezas, Márcia se questiona se é formosa, sem ao menos perceber que aqueles que estão ao seu lado nunca questionaram que ela o era.

A figura de Márcia também parece estar envolta em um medo de que as coisas ruins a persigam, e sinceramente, talvez cercados em meio aos nossos privilégios nunca poderíamos nos comparar a esses sentimentos. Suas responsabilidades e seu esforço a tornam uma personagem totalmente admirável, mas não muda diretamente sua realidade. Ao notar todos esses pesos que carrega, sua ansiedade e medo são totalmente compreensíveis e nos fazem questionar sobre a força que uma mulher tem. 

 Essa figura da mulher que faria tudo pelos seus filhos parece ser uma figura inquebrável e é assustador perceber que talvez não o seja. A marchinha Escuta, Formosa Márcia, que deu nome ao quadrinho e acompanha a protagonista em diversos momentos, parece retumbar nossos sentimentos, e o dos personagens que cercam essa mulher. Mas de que vale essas palavras que se repetem se a mesma nunca é agraciada pela vida, tudo parece se perder em um intenso redemoinho, sua filha, seu amor e mesmo o seu lugar. Essa perda sempre a faz olhar para si mesma e se colocar como centro do mau agouro, mesmo que a culpa não seja dela. 

Por fim, aqui não temos uma história que simplesmente visa te trazer sentimentos empáticos, mas a conexão com a Márcia parece despertar esses sentimentos. Em dado momento, torcemos que seja feliz, não completamente, seus problemas não podem simplesmente sumir, sua vida não pode se inundar de felicidade, mas ao menos pequenas felicidades podem compor sua vida. Essa noção de pequenas felicidades talvez constitua um dos mais importantes elementos da narrativa e da Márcia. Seguir em frente só é possível quando percebemos as pequenas felicidades que nos cercam. 

  • Escuta, Formosa Márcia é uma HQ escrita e roteirizada por Marcelo Quintanilha, arrebatando prêmios como o Angoulême, Rudolph Dirks e Jabuti. A HQ foi publicada em 2021 pela Editora Veneta e constitui uma forte identidade do autor, a vida das pessoas comuns no Brasil e seus dilemas. Em Escuta, Formosa Márcia, acompanhamos a vida de Márcia, uma mãe solteira que vive em uma comunidade do Rio de Janeiro, passando por diversas dificuldades em criar sua filha, Jaqueline, e afastar a garota da criminalidade que os cerca, a vida de Márcia entra em um intenso drama quando sua filha se envolve com o crime. Nos arrebatando com os dramas de uma mãe e suas inseguranças como mulher, somos apresentados a uma história que toca facilmente o coração de qualquer leitor, ainda que o mesmo não possa sequer se conectar com aquela realidade.
  • Marcelo Quintanilha é um dos maiores autores brasileiros da atualidade, produzindo obras que frequentemente se destacam no cenário internacional: Tungstênio (2014), Talco de Vidro (2015), Hinário Nacional (2016), Todos os Santos (2018), Luzes de Niterói (2019), em 2021 fomos agraciados com Escuta, Formosa Márcia.
  • O Angoulême (Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême) é um dos mais importantes prêmios de quadrinhos em nível internacional, sendo realizado desde 1974. As vitórias de Quintanilha no prêmio abre precedente importante para a popularização de HQs brasileiras, venceu o prêmio de quadrinho policial com Tungstênio em 2016, mas alcançou o maior prêmio deste ano (2022) com Escuta, Formosa Márcia.

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