MB Especial – Dia do Folclore

Sempre que falamos de folclore, uma série de pensamentos veem a nossa mente. Provavelmente, a maioria deles não é lá muito positiva, isso quando não chega a um grau de xenofobia. Mas a realidade é que o folclore é muito mais do que isso. Folclore é muito mais do que meia dúzia de personagens. É mais do que aquilo que nos é dito quando chega dia 31 de Outubro e pedem para que valorizemos o nacional e que comemoremos o Dia do Saci ao invés do Halloween. E, mesmo sendo mais, tudo isso que eu falei aqui em cima também é folclore e não deve em hipótese alguma ser colocado abaixo.

Hoje, em comemoração ao dia do Folclore, tentaremos mostrar pra vocês como o folclore é muito maior do que você imagina. Todo mundo já ouviu na escola sobre as lendas do nosso folclore. Essa é uma palavra que vem de um aportuguesamento de “Folk Lore”, podendo ser traduzido tanto como “História do Povo” quanto como “Sabedoria Popular”. Mas poucas pessoas sabem o que realmente isso tudo engloba.

Pelo dicionário, Folclore pode ser definido como “conjunto de costumes, lendas, provérbios, manifestações artísticas em geral, preservado por um povo ou grupo populacional, por meio da tradição oral; populário”. Só com esse texto, já é possível perceber que o Saci e o Curupira fazem parte do folclore, sim, mas não são a sua totalidade. Folclore não é traduzido como sabedoria popular à toa. Folclore são os costumes que nos definem, que nos foram passados e que são intrínsecos a nossa cultura, que praticamos constantemente e de uma forma quase inconsciente.

Um dos maiores pesquisadores sobre folclore que existiu no Brasil, Câmara Cascudo, disse que “Nenhuma ciência possui como o folclore maior espaço de pesquisa e de aproximação humana”. E é isso o que define essa manifestação cultural tão rica.

Você que está lendo pode estar pensando sobre como o folclore é algo apenas mais intenso em zonas mais rurais, e você que está em uma metrópole não tem esse tipo de “crendisse”. Mas um exemplo recente provou o contrário. Na final de Skate Street, diversas foram os relatos de pessoas cruzando os dedos pedindo para que as outras skatistas caíssem para que Rayssa Leal fosse ao pódio. Um costume folclórico.

O folclore está vivo. Ele se manifesta em muitos dos nossos costumes do dia-a-dia, seja de onde for. E isso pode ser visto ainda mais quando analisamos o folclore de outros países. Se procurarmos no Google agora sobre o folclore de algum país da América Latina, as reportagens serão sobre músicas, estilos de dança, talvez comidas típicas e canções políticas. Sim! Como quase todos os países da América Latina passaram por ditaduras, muitos deles se fortaleceram politicamente e suas canções políticas hoje fazem parte da sabedoria popular.

Ou seja, sim, até em folclore, há política. Pra quem reclama que “não é pra por politica no meu quadrinho”, é melhor se acostumar, pois viver é um ato político. E falamos tanto sobre as outras vertentes que parece que estamos esquecendo da mais conhecida e deixando-a de lado, caindo na armadilha que reclamamos aqui no nosso próprio texto. Mas não é bem assim.

Vamos falar sobre as criaturas agora.

As criaturas que fazem parte do folclore vêm de mitos que começaram através de relatos de pessoas. Se engana aquele que acha que um mito é uma mentira. O mito se origina através de uma narrativa que tem como base o desconhecido. E, apesar de parecer que não foi dito nada diferente, a partir deste contexto é possível dizer que Jesus, Maomé e diversos deuses de religiões se enquadram na categoria de mitos. Pois a religião e o mito não são excludentes, nem pejorativos um ao outro. 

Os relatos são passados de geração em geração e com isso cria-se um costume, seja de uma lenda, de um gesto ou de uma expressão. E se você continua pensando que isso é coisa “de gente do interior”, primeiro, uma má noticia: esse é um pensamento xenofóbico. Segundo, lendas urbanas são tão folclore quanto o Boto cor de rosa. O desafio de dar descarga três vezes e chamar a Loira do Banheiro, que era bem comum em escolas, é tão folclórico quanto querer prender o Saci com uma peneira.

Você sabia que a Cuca não é um jacaré? E que o lobisomem brasileiro é bem diferente do europeu? Pois é! Achamos que conhecemos tanto sobre as criaturas e que elas deveriam “ter uma versão mais adulta” geralmente indo para um caminho copiando estéticas estadunidenses quando na verdade não sabemos nem sequer nossas lendas por completo.

A Cuca, por exemplo, é uma bruxa velha que sequestra crianças malcriadas. Um de seus poderes é o de se transformar em diversos animais. A partir disso, a versão que Monteiro Lobato utilizou para o Sítio do Picapau Amarelo, um dos maiores motivos de termos o senso comum de folclore que temos hoje, é um jacaré. Outras versões da lenda comentam que ela é uma bruxa com apenas a cabeça de um crocodilo, ficando no telhado das casas procurando por crianças malcriadas.

E quanto ao Lobisomem? Bom, seria possível tranquilamente passar horas e mais horas falando sobre as diferenças de um lobisomem brasileiro para um europeu, mas vamos as principais. E não estou falando de coisas mais conhecidas como o fato do lobisomem brasileiro ser o sétimo filho, mas sim de questões mais pontuais. Por exemplo, antes de se transformar, o Lobisomem precisa tirar suas vestes e escondê-las, pois se alguém encontrá-las enquanto ele estiver na forma de lobo, ele estará condenado a ficar assim para sempre.

Além disso, a própria transformação é diferente, sendo que as patas dos lobos saem dos cotovelos do homem com esta maldição. Por isso, é muito comum se desconfiar que pessoas que usam camisetas de mangas longas sejam licantropos, e estão fazendo isso para esconder os ralados que aconteceram em sua forma lupina. Isso quando são lobos, porque um dos tipos de lobisomem mais comum é mais um porco ou um cachorro do que um lobo.

Estes são só alguns dos exemplos de criaturas que conhecemos, ou que achamos que conhecemos, dentro do folclore. Poderia passar mais horas e horas falando sobre Saci, Curupira, Caipora, Tupã…

Epa! Tupã não!

Aqui é um grande erro que temos por não estar em contato com a cultura indígena. Lembram que eu comentei ali em cima como religião e mito não são excludentes? Então, mas não é por isso que vão ser a mesma coisa. Deuses e criaturas folclóricas têm algumas semelhanças, assim como o conceito de folclore e o conceito de cultura, mas nem por isso devemos colocar ambos no mesmo balaio.

Usando um comparativo de exemplo, podemos ver como os três pontos estão relacionados. A religião trabalha com os ritos com o divino. O mito é uma narrativa que se utiliza de questões desconhecidas. O folclore é uma questão cultural transmitido através de tradição. Ou seja, como estamos falando de Tupã, que é uma questão que envolve o divino para a cultura guarani, não estamos falando de uma criatura folclórica, assim como não estamos nos referindo a folclore quando falamos sobre batismo judaico-cristão.

Um exemplo de misto de folclore e religião seria a Festa Junina, que, apesar de ter um caráter em celebração a São João, se tornou uma festa popular que foi mais além do que a questão ritualística. Ou seja, mesmo não sendo a mesma coisa, religiões e folclore podem conversar.

E é justamente por desconhecer a importância que diversos destes costumes têm para certos povos que falhamos constantemente em suas representações. Um exemplo mais recente aconteceu na série Cidade Invisível, onde além do fato de se utilizar de criaturas folclóricas indígenas sendo interpretados por atores não-indígena, poderia se beneficiar expandindo seus cenários para outras regiões do Norte e Nordeste onde algumas das criaturas são mais difundidas do que no Rio de Janeiro, onde a série se passa por completo. (Sim, sabemos que é uma adaptação e que não precisa necessariamente ser fiel e que a liberdade criativa deve ser respeitada. Mas a gente também sabe que tem mais caroço nesse angu e que por diversas vezes o Brasil trata as regiões Norte e Nordeste como inferiores e, em um momento em que tais regiões também poderiam ser incluídas, toda a narrativa é transportada exclusivamente para o Sudeste).

Essa foi uma apresentação muito breve para que vocês possam conhecer o que é de verdade o folclore. Que as lendas que conhecemos e achamos infantis tem muito mais por trás do que podemos imaginar e que toda a questão folclórica não se limita apenas a elas.

Para saber mais

Se vocês se interessaram, tem diversos perfis que podem ser seguidos que comentam constantemente sobre o assunto. Um exemplo é o site Colecionador de Sacis, em que Andriolli Costa, um folclorista, expõe cada vez mais novas facetas sobre todo esse universo. Caso prefira, ele também possui um podcast chamado Poranduba.

Além dele, o canal Folclore BR tem feito diversos vídeos com o assunto, além de seu podcast Hora Folk. Recentemente este canal, juntamente com o estúdio Vivárte, realizou uma campanha no Catarse para realizar um curta-metragem animado com esta visão mais ampla do folclore como é. A campanha foi bem sucedida e podemos ver diversos itens de divulgação pela internet, pois a produção do curta está a todo vapor.

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Além destes dois, temos Lorena Herrero, mais conhecida como HET (@hetthepumpking), uma ilustradora especializada em folclore, principalmente em lobisomens brasileiros. Atualmente Het está publicando quinzenalmente seu quadrinho, Sétimos Filhos, gratuitamente na plataforma Tapas. Inclusive, todas as ilustrações deste artigo foram feitas por ela! 

Já para os fãs de livros, recomendo ficar de olho no trabalho de Ian Fraser (@tdislexico). O autor baiano escreveu um livro envolvendo mistério e o clima noir de filmes de detetives utilizando as lendas folclóricas, Noir Carnavalesco. Além disso, sua série de fantasia, Araruama, utiliza de diversas questões culturais de toda a américa latina.

E no Japão?

Ok, mas aqui é uma página de mangás, né? E no Japão, quais são os mitos e lendas folclóricas?

Isso na verdade é algo que está bem presente em diversos dos mangás que lemos e adoramos. Uma das maiores manifestações culturais folclóricas que existem em terras nipônicas são os yokais, seres sobrenaturais dos mais diversos tipos. Alguns podem querer ajudar os humanos, outros querem testá-los e pregar peças, outros desejam apenas ver o mundo pegar fogo.

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Os mais diversos tipos de obras abordam yokais, como Yokai Watch, Nura – A Ascensão do Clã das Sombras e até o mais aguardado lançamento da JBC, Inuyasha, tem sua premissa baseada no folclore japonês. Para se ter uma ideia dessa influência até em mangás que nem sequer sabíamos, um dos maiores conflitos que existem entre yokais no Japão é da Kitsune, uma raposa; e o Tanuki, uma espécie de Guaxinim. Qualquer semelhança com um certo ninja gari lutando contra um ruivo sem sobrancelha é mera coincidência.

Mas, a recomendação que eu acho mais importante dar nesse contexto é de quem popularizou essa temática nos mangás: Shigeru Mizuki. Talvez o nome seja familiar para você, seja por tê-lo visto em alguns mangás já publicados aqui no Brasil ou por já ter visto um anime inspirado em sua obra.

Shigeru Mizuki é o responsável por Marcha para a Morte, mas seu trabalho com a popularização de yokais se deu principalmente com as obras Gegege no Kitarou e Nonnonba, este último já tendo sido publicado pela editora Devir através do selo Tsuru.

Então, com uma visão menos infantilizada e menos voltada a preconceitos de “isso não é pra mim”, vamos pensar melhor no folclore, pois ele está presente em muito mais do que imaginamos. Seja o brasileiro, seja o japonês ou de algum outro país, consumamos a cultura e tudo o que ela nos tem a oferecer! O Folclore não precisa de reinvenções, como um jogo futurista ou uma história de terror. Nenhuma reimaginação é necessária para fazer com que ele fique interessante. Ele já é! Só precisa que conheçamos ele de verdade, então vamos buscar esse conhecimento e ver que, apesar de ser uma frase clichê, ele é muito mais do que imaginamos.

 

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